Sobre as tarrafas

Leia o texto que o professor de Música Vicente Valery escreveu sobre o pós-campo da viagem de Estudo do Meio do 7º ano ao Lagamar

Há 24 anos, os alunos do 7º ano realizam um Estudo do Meio à região do Vale do Ribeira e conhecem os municípios de Cananéia, Iguape e Ilha do Cardoso. No sul do estado de São Paulo e leste do Paraná, a região abriga a maior área contínua de Mata Atlântica ainda existente. É a mais importante reserva de água doce dos dois estados e um dos lugares mais preservados do Brasil. Numerosas ilhas de aspecto variado completam a paisagem dessa região complexa, que se estende de Iguape, em São Paulo, a Paranaguá, no Paraná, e é conhecida como Lagamar. Nesse ano, na volta do Estudo do Meio, no chamado pós-campo, além do debate científico e da sala de imersão poética na biblioteca, os alunos produziram uma instalação artística com uma rede de pesca em cada sala de aula do 7ºano.

Leia, a seguir, o texto que o professor Vicente Valery (Música) preparou em nome dos colegas do 7ºano, descrevendo a beleza desse trabalho:

“Nomeia-se “lagamar” as áreas em que se encontram águas de rios com as do oceano. Esse encontro marítimo, cercado por florestas, manguezais, praias e ilhas, não só promove flashes paradisíacos. Uma abundância de vidas brota em um lugar tão fecundo. Para além da compreensão paisagística, o “homem” que vive nesse lugar, merece também ser reconhecido.  

Há 24 anos o Colégio Santa Cruz toma o Complexo Lagamar Sul Paulista como lugar para que ocorra o Estudo do Meio do 7º ano. Em terras úmidas, aportamos em Cananéia e na Ilha do Cardoso, parte dessa grande extensão, para que nosso estudo se desenvolva. 

Uma viagem começa antes e acaba depois da estadia em si. Antes planejamos pontos a serem visitados. Depois saboreamos as emoções oriundas do que foi vivido in loco. As viagens escolares mantêm esse tempo, mas apresentam outras compreensões sobre eles. Sobretudo, em nosso Colégio, em que inúmeras propostas pedagógicas são realizadas, contemplando o pré e pós campo, para que esses momentos reafirmem a importância de se viajar (de se estar em campo). 

Como mencionado, não há como pensar nesses lugares sem a gente que os habita. Está provado que o homem é parte central nas ações de preservação ambiental. Pertencendo ao espaço, ele age de forma direta em seu benefício e conservação. 

Num dos dias de estudo, quando nossos alunos estão no Parque Estadual da Ilha Cardoso, mais especificamente no Núcleo Perequê, eles encontram com um sábio pescador que para eles palestram. Com maquetes e instrumentos de pesca, o Ilso, colega de décadas do Santa Cruz, demonstra como ocorre a pesca industrial em relação à pesca artesanal. Também revela aspectos das Artes de Pesca e enfatiza uma das armadilhas que o pescador do Lagamar utiliza, que é a “tarrafa”. 

A tarrafa é uma rede circular, tecida com fios que formam malhas. Conforme o tamanho da espécie a ser pescada, o ponto da malha pode ser maior ou menor. Em seu centro acopla-se um cabo que recebe o nome de fieira. Em sua borda são costuradas chumbadas, conferindo peso ao artifício. Para ser jogada, parte dela é amparada num braço junto com a fieira. A boca agarra uma pequena parte da borda, para que auxilie o perfeito lançamento. O outro braço a lança. Quando lançada, as chumbadas proporcionam a maior abertura circular possível e seu peso fornece o correto fechamento da malha sobre o cardume. E vale lembrar que toda pesca carrega a surpresa como companheira. A sabedoria de se enxergar um cardume, agir com tenacidade para lançar a tarrafa, não garante se virá muitos peixes, se o êxito se revelará. Há pescas boas e ruins. 

Nesse dia, no fim dele, antes de cruzarmos a Baía de Trapandé de barco de volta à Cananéia, o Ilso faz uma demonstração dessa prática na praia, utilizando uma tarrafa que ele mesmo teceu. Nessa pesca inusitada, a água salobra e a areia são trocadas pelo ar e os peixes são substituídos por pessoas. Num lance impecável, como ocorre há anos, o Ilso abre majestosamente a malha que sobre nossos alunos cai. 

A tarrafa que é instrumento, é manejo, que explicita a sua função, nos inspira, nos fornece inúmeros símbolos. Diante das emoções experimentadas, mais que artefato de pesca, para nós a tarrafa se transforma em poesia, em princípio estético. 

Já no pós campo, encontramos novamente nossos alunos e retomamos esse momento, em que evidenciamos essa figura material principal: a tarrafa. Com eles falamos novamente sobre as experiências que a viagem nos proporciona. Realçamos as condições que a viagem nos coloca em relação aos deslocamentos, aos novos olhares, à surpresa do encontro com o outro. Estimamos que eles externem outras atenções para além de seus íntimos, que seus olhares em uma nova perspectiva, tenham atravessado paisagens e que elas também os tenham atravessado. 

Apoiados nesse preceito estético, propomos para eles um trabalho prático, lançando uma pergunta propositalmente redundante: “o que só você viu em sua viagem”?  

Utilizando materiais e conceitos artísticos diversificados, reorientados de forma única para cada classe, pedimos para que nossos alunos individualmente confeccionem, de forma plástica, algo que represente sua experiência nessa viagem. 

Numa ação concomitante, no teto de cada classe é fixada uma tarrafa. Após a fase de composição/confecção desses novos artefatos, feitos agora por nossos alunos, estes são pendurados sob a tarrafa. Dentro da sala, essa instalação se estende sobre carteiras, mochilas, livros e cadernos, alunos e professores. Agora, de forma coletiva, essa obra busca uma representação artística da captura: uma pesca simbólica. Num comportamento oposto aos cardumes, nossos alunos oferecem seus trabalhos para serem pescados. Sem surpresa, com o êxito materializado, vê-se que a pesca foi gratificante.”

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