CENÁRIOS DE GUERRA

Indicações literárias da Biblioteca Padre Charbonneau

Ao longo de 2020 e 2021, a guerra contra o vírus da covid-19 foi intensa e uniu boa parte do mundo em uma corrente solidária, empenhada em encontrar respostas, vacinas, condições de sobrevivência, alento para familiares e amigos enlutados. Quando o vendaval da covid arrefecia, as notícias sobre a invasão da Ucrânia nos deixaram atônitos: não estávamos todos irmanados na valorização da vida? E a guerra, ou melhor, as guerras continuam. Turquia, Síria, Índia, Iêmen são alguns dos países que enfrentam conflitos armados; em centenas de outras regiões, a guerra contra a fome, contra a desinformação, a opressão, enfim, situações que colocam milhões em situação de vulnerabilidade e promovem êxodo, diásporas, desamparo.

Deixar família, amigos, casa, uma vida… superar obstáculos de travessias, encontrar um lugar onde haja condições para se construir um futuro é muito mais frequente do que se imagina. É, também, muito difícil, pois, para além das perdas, é preciso se reinventar, aprender uma nova cultura, outro idioma, superar o preconceito, submeter-se a um mundo estranho e, por vezes, perverso.

Segundo relatório da ONU Migration/2022 (https://www.iom.int/data-and-research), estima-se que 3,6% da população mundial estão fora de seu país, por perseguição política, fuga da pobreza, desastre natural ou outras motivações que podem ser agrupar sob a rubrica “cenários de guerra”. A porcentagem pode parecer pequena, mas equivale a 281 milhões de pessoas, bem mais do que um Brasil inteiro! 

Mas o que nos interessa aqui é como a literatura nos apresenta essas tragédias e, consequentemente, a vivência dos deslocamentos. Sempre atenta à insensatez que leva ao sofrimento humano, a palavra poética se compromete com a recondução do olhar. Ler, desde a primeira infância, é uma possibilidade de (re)construirmos um lugar para todos e todas.

Apresentamos abaixo alguns títulos comentados e uma lista de outras opções para tocar corações e mentes.

Título: Por quê?

Autor e ilustrador: Nikolai Popov

Texto em francês da edição suíça: Géraldine Elschner

Tradutora: Ruth Salles

Editora: Ática

O que você faria se estivesse calmamente contemplando um campo cheio de flores e alguém arrancasse das suas mãos uma flor recém-colhida?

Este livro-álbum “imaginado e ilustrado” com belas aquarelas pelo escritor russo Nikolai Popov (1938 -) traz uma clara mensagem antiguerra.

Uma simpática rã sentada alegremente em uma rocha em um campo cheio de flores é atacada por um rato que lhe rouba das mãos uma flor exatamente igual a todas que crescem ao redor. A rã não aceita o desaforo e chama as amigas para vingá-la. Começa uma batalha entre rãs e ratos que se intensifica a cada virada de página, com direito a troca de tiros e armadilhas perversas criadas pelos dois exércitos.

Vale a pena notar que as cores em tons pastéis vão escurecendo, dando ênfase ao quanto o conflito armado é capaz de destruir a natureza ao redor. Também repare que as feições das rãs e dos ratos se mantêm amáveis e cativantes mesmo em plena guerra, enquanto fazem coisas terríveis.

Claro que o final desta breve história é triste e previsível, mas poderia ter sido diferente se as ações não tivessem sido tomadas antes de uma conversa entre rã e rato. Por que é isso o que temos visto acontecer apesar de este mundo ser governado por seres dotados de uma inteligência tão extraordinária?

Originalmente, o livro foi publicado como livro-imagem, entretanto a versão em português foi traduzida da versão francesa, editada na Suíça, na qual foi acrescentado um texto que, em minha opinião, pode ser dispensável, pois “teima em sublinhar aquilo que é muito bem contado pela imagem” (JAN, Isabelle citada por PATTE, Geneviève). Crianças, mesmo as bem pequenas, são capazes de explorar esta narrativa com interações surpreendentes.

Nikolai Popov é também o ilustrador do livro Amazonia: Indigenous Tales from Brazil, de autoria de Daniel Munduruku.

Por Bia Savoldi

Título: Refúgio

Autora: Sandra le Guen

Ilustradora: Stéphane Nicolet

Tradução: Cláudio Figueiredo

Editora: Edições SM

É possível a comunicação entre duas pessoas que falam línguas diferentes? Para Sandra le Guen, autora francesa do livro “Refúgio”, sim!

Com a curiosidade de ambas pelo céu e seus astros, Joana e Ilena constroem uma linda amizade em que compartilham muitos interesses em comum, apesar das divergências culturais. A empatia e o carinho de Joana com a história vivida de um refúgio forçado por Ilena e sua família transformam essa amizade em um ambiente de proteção para as duas meninas.

O livro-álbum conta com ilustrações belíssimas de Stéphane Nicolet, que remetem aos desenhos infantis feitos pelas amigas, com elementos que refletem suas coisas favoritas, como o céu, as estrelas e os planetas.

Apesar de tratar sobre uma temática violenta e intensa, o conjunto história-ilustração nos permite encarar o assunto de forma leve e esperançosa, ainda nos lembrando da importância das relações de afeto e acolhimento em situações extremas como essa.

Por Sarah Pereira Guio

Título: A chegada

Autor: Shaun Tan

Editora: Edições SM

Perplexa e impactada com tamanha beleza e profundidade – foi assim que me aproximei desta obra.

 Sem nenhum texto escrito, além dos dados do livro, a história é constituída apenas de imagens que tecem a narrativa. Já na capa, o leitor é “fisgado” pelas ilustrações que se apresentam na cor sépia, tal qual um documento antigo. A mesma figura apresenta o protagonista próximo a um ser estranho, cujo lugar na história vamos inferindo ao longo da leitura.

 A obra retrata, de maneira sensível e realista, a difícil história dos imigrantes que são forçados a deixar seus países e se refugiar em outras terras. Conta a história de um pai de família que parte para um país estrangeiro em busca de melhores condições de vida. Página a página, Shaun Tan apresenta-nos o longo percurso dessas pessoas e o estranhamento de quem se sente estrangeiro, chegando a um lugar que não é sua casa.

O autor faz uso de diversos recursos gráficos, mostrando um pouco de sua história e de tantas outras pessoas.  Os quadrinhos remetem-nos à ideia de um álbum de fotos antigas, chamando-nos a acompanhar a passagem do tempo. Há também uma alternância de imagens grandes e pequenas, quase em linguagem cinematográfica, apresentando cenas da imigração.

Um trabalho primoroso, sem dúvida. Uma verdadeira obra de arte.  

Curiosidades sobre o autor e seus trabalhos

Shaun Tan foi o último aluno da sala, quando criança – mas conhecido como “o bom desenhista”.  Aproveitando-se dessa competência, tornou-se um grande ilustrador. Foi premiado em diversas categorias; ilustra obras de outros autores e faz esculturas.

Foram necessários quatro anos para Shaun Tan escrever e ilustrar a obra que traz, também, um pouco de sua história. Para compô-la, analisou fotos, postais, filmes; entrevistou imigrantes, como o próprio pai.

Por Silvia Helena Casatle

Título: A Odisseia de Hakim, v.1: da Síria à Turquia 

Autor: Fabien Toulmé 

Editora: Nemo 

A Odisseia de Hakim é uma trilogia narrada em quadrinhos pelo escritor francês Fabién Toulmé. Neste primeiro volume, “Da Síria à Turquia”, Hakim Kabdi (nome fictício) conta a Toulmé como a sua vida, a de seus familiares e as de milhões de sírios desmoronaram após o início da guerra civil na Síria, em 2011.  

Por meio desta história, é possível nos aproximar da vida de Hakim, um jovem sírio que levava uma vida comum, trabalhava em seu viveiro, adorava cuidar das plantas. À noite, divertia-se com seus amigos, fazia planos para o futuro, até que sua vida foi interrompida por conta dos conflitos em seu país. Cansada do regime ditatorial do presidente Bashar al-Assad, a população decidiu ir às ruas, se manifestar pacificamente e o governo respondeu com extrema violência. Iniciou-se então uma escalada de conflitos e repressão que perdura até os dias de hoje. A guerra civil obrigou milhões de sírios a fugirem de seu amado país e se abrigarem em outros. O relato de Hakim nos tira do nosso lugar privilegiado e nos lança a uma realidade triste e revoltante ao mesmo tempo. 

O autor conseguiu unir reflexão e informação em uma obra dinâmica, que nos permite uma leitura para além da narrativa, nos aproxima de uma cultura diferente e, também, de uma dura realidade:  a dos refugiados, cidadãos como eu e você que precisam deixar tudo para trás e recomeçar a vida em outro país ou continente, e não por vontade própria, mas por sobrevivência.

Por Fabiana de Moura Silva

Título: Migrantes

Autora: Issa Watanabe

Editora: Solisluna / Emília

Entre o silêncio e a poesia, Issa Watanabe, jovem peruana que morou alguns anos em Maiorca, onde conviveu com imigrantes, nos conduz ao longo de páginas atravessadas por um grupo de animais antroporfomizados (ou pessoas desumanizadas), em busca de um lugar, de um futuro.

O agrupamento ignora regiões de procedência, sugerindo a universalidade da agonia que vivem, que se trata de questão global, de diferentes momentos da história, incluindo os atuais; ignora também regras da cadeia alimentar, disputas, estranhamentos. A liga entre um e outro está na empatia, na identificação que se ancora no sofrimento e no abandono.

A incerteza da empreitada se materializa no negro pano de fundo de todo o volume e no contraste com cores fortes que vestem as personagens, que se espraiam por páginas duplas, aprofundando e ampliando o olhar, o pensamento, a emoção. Os ramos das árvores secas e frutíferas são como veias e nos mostram que a morte vai sendo vencida a cada passo, que o futuro está na próxima página. E a presença da frágil caveira, paciente e confiante, majestosa em seu pássaro azul, não assusta, mas cala e desarma.

O tema já foi abordado em inúmeras obras literárias, mas nessa publicação de 2021, lançada pelo selo da Emília, Issa propõe algo ainda pouco explorado: uma leitura imagética, comovente para adultos e crianças, até as bem pequenas, que podem nos surpreender como quando notam que o feroz e majestoso Urso nada pode diante da injustiça dos homens, diante das negligências em relação ao aquecimento global, da ameaça constante da extinção.

A narrativa contém inúmeras camadas de compreensão e abre um leque bastante poderoso à evocação de situações que povoam os livros de História e noticiários. O enredo também nos inquieta com perguntas que se remetem a detalhes: o que cada um escolheu ou pode levar na sua valise, trouxinha, bolso do casaco? O que deixaram para trás? E outras questões simples e fundamentais. Por quê? Para quê?

Para degustar, acesse: https://www.youtube.com/watch?v=40mirIknTKA

Para atualizar informações sobre refugiados: https://www.acnur.org/portugues/dados-sobre-refugio/

Por Ellen Rosenblat

Título: Mexique – o nome do navio

Autoras: María José Ferrada & Anna Penyas

Tradutora: Carla Branco

Editora: Pallas Mini

Impossível ler este livro e não terminar com olhos marejados e um nó na garganta. A artesania cuidadosa das autoras tecendo palavras e imagens proporcionam ao leitor emoções, reflexões e aprendizagens. Partindo de um fato real, incrivelmente assustador sobre a história recente vivida por espanhóis ao enfrentarem a ditadura de Franco, acompanhamos a narrativa de uma das 456 crianças embarcadas da Europa para o México com a promessa de um futuro reencontro com suas famílias após a crise democrática. Porém, o que a História e a história nos contam é um final bem mais cruel.

Apresentar aos pequenos leitores narrativas tão complexas nem sempre é fácil, porém a arte nos permite aproximar de realidades e dilemas humanos necessários para sairmos da anestesia da leitura, como nos indica María Teresa Andruetto, escritora argentina internacionalmente reconhecida. Segundo ela, tais leituras são produzidos por “fórmulas fixas e estereótipos que impedem penetrar na superfície dos textos e da vida (…) histórias narradas numa linguagem amável e inócua, são antípodas do literário, cuja potência reside justamente na possibilidade de nos inquietarmos”, proporcionando reflexões para não repetirmos o passado.

Se leituras como esta abrem espaços para conversas, reflexões e conhecimentos, sensibilizando para situações humanas tão difíceis, em tempos em que precisamos formar as novas gerações para um mundo melhor, parece ser um direito de cada criança poder ler tais obras.

Por Sandra Medrano

OUTRAS SUGESTÕES DE LEITURAS QUE ABORDAM O TEMA:

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