Atuação antirracista: a (re)construção de um acervo

Alinhada a todos os princípios e movimentos institucionais de nosso Colégio, a busca do desenvolvimento de um acervo antirracista tem sido um dos projetos centrais da atuação da Biblioteca Pe. Charbonneau. A revisão dos títulos e a incorporação de novas obras no acervo são duas das principais subdivisões desse movimento, que visa ampliar a representação negra e indígena em nossa biblioteca. Embora a ampliação do número de livros que contribuam para a construção de posicionamentos antirracistas seja um elemento essencial deste processo, a quantidade é apenas um dos aspectos que tem orientado nossa prática. 

Entendemos que a construção de um acervo antirracista deva ser baseada em critérios de análise bem definidos a respeito da qualidade de obras. Assim, a Biblioteca Pe. Charbonneau tomou como referência categorias propostas pelo pesquisador Eduardo de Assis Duarte em seu artigo “Por um conceito de literatura afro-brasileira”.1 

Como primeiro critério, destacamos a necessidade de garantir uma presença significativa de obras escritas por autores negros e indígenas, especialmente aquelas que valorizem aspectos pouco abordados no que diz respeito às culturas africanas, negras e dos povos originários, bem como as que problematizem o racismo e seus efeitos na dinâmica das relações sociais em todos os seus aspectos e dimensões. No caso de obras que abordem essas temáticas e sejam produzidas por escritores não negros ou não indígenas, salientamos a necessidade de observar se os autores se posicionam de forma ética. Nesse sentido, consideramos a posição da escritora Sonia Rosa que, ao discutir a literatura infantojuvenil negra afetiva, afirma: “o autor não precisa, necessariamente, ser negro ou se autodeclarar como tal. Mas é importante que consideremos que um livro com personagens negros, sendo o autor e/ou o ilustrador da obra também negros, contribui bastante para uma afirmação identitária mais forte. É a subjetividade negra.”2 

O segundo critério para análise diz respeito à temática, que não pode propor ou sugerir estereótipos e deve contribuir para repertoriar o imaginário das pessoas com personagens negros e indígenas sendo representados de forma positiva. Novamente recorremos à Sonia Rosa que propõe o conceito de negro afetividade e enfatiza a “[…] necessidade de trazer personagens negras em situação de conforto, respeito e dignidade para este espaço artístico singular, que é o livro voltado para infância e juventude. Este potente objeto de arte pode contribuir para a formação racial das crianças e jovens brasileiros. E ainda, esses livros podem atuar como um eficaz letramento racial, contribuindo para uma formação dentro da diversidade por meio de saberes ligados à racialidade”3

Para analisar e (re)construir nosso acervo, ampliamos o conceito proposto por Sonia Rosa também para a literatura indígena. É fundamental que haja ampla quantidade de livros que contem com o protagonismo de personagens não brancos e de livros direcionados a um público diverso. Afinal, por muito tempo, pessoas negras e indígenas foram desconsideradas como protagonistas nas narrativas literárias e como leitoras. 

O terceiro critério é o ponto de vista – a priorização de um olhar que possa trazer a perspectiva do negro e do indígena. Aqui entra, também, a questão da linguagem que desacomoda e decoloniza.   

Por fim, o quarto critério aborda a qualidade textual/visual/temática: a forma como o texto e a imagem representam negros e indígenas. É fundamental que textos e imagens não representem nem insinuem preconceitos e estereótipos, que constituem uma forma de violência e impactarão negativamente o imaginário das crianças leitoras. 

Esses critérios avaliativos têm sido os norteadores de nossa equipe para discutirmos a qualidade de uma obra, do ponto de vista antirracista e da qualidade literária e editorial. É com base neles que temos buscado valorizar, em nosso acervo, os livros que já atendem esses critérios e, a partir deles, ampliar ainda mais o nosso repertório. É evidente, porém, que os quatro critérios se referem à ampliação de um acervo pela aquisição de novos exemplares, mas não resolvem desafios relacionados à condição de um acervo antigo que reflete, em algumas obras, preconceitos sociais enraizados.   

Afinal, pode-se ampliar a oferta de literaturas negras e indígenas sem, ao mesmo tempo, discutir o que fazer com as obras que não atendem aos nossos critérios no que diz respeito à qualidade literária e/ou ao posicionamento ético. Um exemplo atualmente muito em pauta é o dilema de como podem as bibliotecas – em especial as escolares – lidar com as múltiplas obras escritas por Monteiro Lobato em seus acervos infantojuvenis. 

Claro que a abordagem da obra de Monteiro Lobato é apenas a primeira etapa de uma ação mais ampla, a parte mais visível que representa um problema estrutural complexo, pois o dilema permanece: como as bibliotecas podem lidar com uma herança literária violenta e racista de modo ético? Entendemos, enfim, que tais livros têm este exato valor: de herança e de história. São livros que não devem ser censurados, pois valem como objetos de estudo; optamos por entendê-los como contraexemplos; e se queremos nos pautar pela qualidade de nossos exemplos, precisamos estar certos de quais são suas antíteses. 

Portanto, decidimos que o livro considerado inadequado não é censurado, mas muda de lugar. Não permanece no acervo infantojuvenil para as crianças pequenas, que ainda estão se formando como leitoras, lerem sem mediação. São encaminhados para um acervo específico, sua existência não será apagada, o que poderia sugerir que a violência que veiculam ou promovem nunca existiu. Esses livros serão apresentados a um público adulto, para serem estudados e utilizados em uma leitura mediada e educativa, especialmente organizadas para leitores em formação. Entendemos que a leitura e a análise mediada de obras identificadas como inadequadas – nesse caso, pela presença de preconceito e discriminação – podem cumprir o propósito de contribuir para a educação antirracista do adulto e, consequentemente, da criança. 

Em nosso acervo, começamos com a mediação das obras de Monteiro Lobato, que foram retiradas do acervo infantojuvenil e encaminhadas para o acervo geral/adulto. Dentro dos livros de autoria de Lobato foi colocado um recado deixado pela equipe da Biblioteca que visa fornecer ao leitor informações e ferramentas críticas de análise da obra. 

Ressaltamos que, especialmente no ambiente de uma biblioteca escolar, é responsabilidade de toda a equipe de educadores reconhecer, identificar e enfrentar o racismo em seu acervo. Para tanto, é fundamental estudar, conversar entre pares e buscar assessorias que contribuam para a organização e a condução de propostas fundamentadas e comprometidas com uma ação antirracista; este próprio texto é um resultado do processo de formação antirracista da equipe da nossa biblioteca. Para praticar uma educação antirracista, entendemos que a biblioteca precisa, também, (re)avaliar constantemente as obras existentes em seu acervo, assim como buscar periodicamente a atualização deste. Finalmente, é essencial desenvolver formas de apresentar os contraexemplos para que os leitores (a depender da maturidade e/ou faixa etária) possam entender por que a obra foi considerada um contraexemplo e por que não foi retirada da biblioteca. 

Por fim, convidamos todos a consultarem os catálogos da literatura antirracista disponível na biblioteca: 

Representatividade indígena – literatura adulta 

Representatividade indígena – indígena infantojuvenil  

Representatividade negra – literatura adulta 

Representatividade negra – literatura infantojuvenil 

Beatriz Ruffino e Sandra Medrano
Representantes da equipe da Biblioteca Padre Charbonneau.


Referências bibliográficas 

Agradecemos a colaboração de Neide Almeida, especialista que nos assessorou no percurso formativo e na revisão deste texto.

1 DUARTE, Eduardo de Assis. Por um conceito de literatura afro-brasileira. Terceira Margem, v. 14, n. 23, p. 113–138, 2010. Disponível em <https://revistas.ufrj.br/index.php/tm/article/view/10953>. Acesso em 26/02/2024

2 ROSA, Sônia. Literatura negro afetiva para crianças e jovens. Geledés, 31/08/2021. Disponível em <https://www.geledes.org.br/literatura-negro-afetiva-para-criancas-e-jovens/>. Acesso em 26/02/2024.

3 Ibid.

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