Tempo, experiência, poiesis*: em busca de caminhos convergentes

Só de um temor vos darei parte;
É curto o tempo, é longa a arte.
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(Desafio de Mefistófeles a Fausto, em Fausto, de W. Goethe)

O tempo na escola é tenso. Estira-se e comprime-se entre dois grupos de forças: de um lado, a rapidez e a voracidade que se impõem como norma da cultura; de outro lado, a resistência do retardo, da distensão, da pausa. Programas educacionais, conteúdos disciplinares, avaliações, todo o universo pedagógico agrega em sua órbita acelerada os inumeráveis projetos de ensino determinados pelo tempo letivo. Professores e estudantes estão sempre agitados, inconclusos, e as pausas breves não detêm o cronômetro inflexível. Essa condição parece insuperável, porque é alimentada pela intrincada e complexa lei da cultura moderna em sua ânsia de viver e desvendar – uma demanda muitas vezes intransitiva, sem objeto.

Fausto, o personagem de Goethe, marca-se pela inquietude, pela obsessão de devorar o novo, pela embriaguez de velocidade. Emblema da existência simbolizada pela modernidade, a ânsia desmedida de Fausto leva-o ao pacto lembrado na epígrafe deste texto. Mefistófeles lhe concede o poder para conhecer tudo e viver o ilimitado desafiando e superando o tempo. Fausto pactua com ele, peremptório, afirmando ser esse seu desejo. Mais ainda, jura entregar sua alma caso algum dia caia na tentação de desejar eternizar e parar o instante: “Ao momento então diria: Para, enfim – és tão belo!”***. A humanidade de Fausto é avessa à contemplação do presente. Desconhece a experiência.

Larrosa**** critica a educação que se constrói conforme o modelo volátil e fragmentado das vivências contemporâneas. Conhecimento, saber, humanização e memória constituem a substância e o sentido da escola. Para ele, o que configura e recria essa substância e esse sentido é a experiência, ou seja, as circunstâncias apreendidas a um só tempo pelo olhar, pela razão e pela emoção – a serem abrigadas na memória individual e nas narrativas compartilhadas que recontam a história humana e de cada um.

Entretanto, a velocidade impede a nutrição da memória, tendo em vista sua obsessão pelo novo; o estado de excitação e de ansiedade não deixa vestígios; o furor e a agitação adiam o encontro e fecham as portas da introspecção, da ponderação.

Os professores do Colégio Santa Cruz têm trazido para suas reflexões pedagógicas o tema do tempo tensionado que permeia a maior parte do cotidiano escolar. Percebem-se absorvidos, juntamente com suas aulas e conteúdos, no vórtice dessa aceleração que pretensamente daria conta da “totalidade do conhecimento”. No entanto, buscando problematizar a situação, recolhem de sua história docente páginas que expressam o contraponto da automatização, ou seja, a experiência didática capaz de interromper o fluxo vertiginoso da vida contemporânea e abrir brechas de poesia, de surpresa, de diálogo no cotidiano apressado.

Tempo e experiência foi um dos temas que os educadores discutiram no Congresso de janeiro deste ano, procurando redimensionar os conteúdos disciplinares e renovar metodologias, bem como assegurar-se de suas próprias práticas, que já compõem o acervo de nossa educação crítica e criativa. Articulada a esse tema, a Prática “maker” mobilizou um grupo de professores, concentrados em compreender essa metodologia que recupera a “artesania”, o elogio de um fazer manual inventivo e reflexivo, e concede ao estudante uma atuação autoral. Avaliação, currículo, ideologia, autonomia do professor, também esses temas – transversais aos mencionados –, levaram os vários grupos de trabalho a repensarem espaços para o aprimoramento da pedagogia, à luz das questões contemporâneas.

A busca de vias alternativas para a escola parte da consciência de que há uma contradição a ser superada: o conceito e a finalidade da educação – uma formação holística presentificada e voltada à humanização – confrontam-se com uma perspectiva pragmática de preparação adaptativa para o futuro. Desse modo, os valores da educação se ausentam daqueles professados pelo contexto social da atualidade.

A saída oferecida pelo discurso contemporâneo propõe uma parceria entre ciência e técnica, capaz de municiar os alunos com as tecnologias (digitais, cognitivas, avaliativas) que podem prepará-los para o universo da informação e da economia globalizada, pleno de incertezas. Nessa via pedagógica, a educação incorpora características de uma ciência aplicada.

Um contraponto a esse caminho está centrado na filosofia da educação como práxis política, em que os educadores – sujeitos críticos – atuam com base em práticas disciplinares voltadas sobretudo à reflexão e à atuação transformadora da sociedade e da cultura.

Nessa topologia de caminhos bifurcados, a concepção de experiência apresentada nos parágrafos iniciais pode ser uma inspiradora via de convergência, e não de exclusão, dos outros meios e fins educacionais. A formulação de Larrosa interpreta o conceito de experiência de Walter Benjamin*****, postulando que a educação é um processo formativo sempre aberto e incompleto, como o próprio conhecimento. Sua realização independe da organização disciplinar dos saberes e abraça a subjetividade como um componente indissociável da aprendizagem compreendida como experiência compartilhada em diferentes linguagens. Sem destituir os discursos vigentes de sua validade, essa terceira via pode desenhar a confluência das duas linhas pedagógicas citadas, semeando seu potencial de humanização exatamente nos intervalos e nos vazios que as demais alternativas didáticas não preenchem.

A vinculação de vida a conhecimento, por meio da experiência, requer uma distensão do tempo escolar, à revelia da velocidade imposta pela voracidade das vivências contemporâneas e das informações externas. O reencontro da artesania – nos espaços de criação maker e nos projetos interdisciplinares – e a retomada crítica dos princípios da avaliação da aprendizagem e do desenho curricular têm se configurado um tema promissor para a permanência do vigor e do viço da educação no Colégio Santa Cruz.

* Conceito clássico que se refere ao fazer criativo, à produção que envolve a um só tempo reflexão e artesania.
** Doch nur vor einem ist mir bang:/ Die Zeit ist kurz, die Kunst is lang. (Goethe, Fausto, 1808).
*** Zum Augenblick dürft’ ich sagen: / Verweile doch, du bist schön! (Idem, Ibidem).
**** Jorge Larrosa, professor de Filosofia da Educação da Universidade de Barcelona, aborda esse tema no ensaio “Notas sobre a experiência e o saber da experiência”, em Revista Brasileira de Educação, 2002.
***** Walter Benjamin (1892-1940), pensador alemão, autor de ensaios e textos literários que abordam o conceito de “experiência” em contraposição às vivências vazias de sentido na modernidade.

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