Permanência, transformação e diversidade

É difícil falar em diversidade na escola, na nossa escola… Quando olhamos para nossos alunos, enxergamos jovens muito diferentes entre si, singulares, marcadamente diversos: com interesses diferentes, experiências diferentes, engajamentos diferentes, objetivos diferentes… Mas basta afastar um pouco o olhar e ficam todos muito parecidos!

Não é novidade que o Colégio Santa Cruz, escola comprometida com a formação humanista e com o livre pensar, tem, desde a sua formação, a preocupação de apresentar a seus alunos a sociedade em que estão inseridos, com todas suas nuances e suas polêmicas. Valores como respeito ao outro, tolerância e dignidade humana são centrais no nosso currículo. Esses princípios se realizam nas situações em que os estudantes são levados a pensar sobre as diferenças que nos cercam e nas vivências próximas a pessoas que se encontram em condições muito distintas: de diversidade religiosa, de gênero, étnico-racial, política, socioeconômica e cultural.

Como superar o racismo numa escola eminentemente branca? Como formar cidadãos que contribuem para a sociedade brasileira sem olhar de um lugar particular o abismo da desigualdade social? Como entender o que é ser fraterno sem acolher verdadeiramente o diferente? Não é fácil e talvez nem seja possível dar conta disso por completo, mas, em uma instituição educacional que se pauta pelo reconhecimento de direitos humanos universais, não é possível deixar de encarar esses conflitos. É com um currículo amplo que essas questões passam a fazer parte de nossos objetivos formativos e que damos passos importantes para concretizá-los.

Como sequência ao trabalho do Ensino Fundamental, no Ensino Médio, oferecemos aos nossos alunos muitas oportunidades de pensar as diferenças que nos cercam, ou mesmo de vivenciar experiências com a diversidade. E mesmo sendo elas bem-sucedidas, permanecemos sempre desafiados por esses temas.

Passar uma semana em uma comunidade ribeirinha no Amazonas, junto a uma coletividade que se mantém basicamente daquilo que a floresta oferece; conversar e se surpreender com moradores de rua e descobrir suas histórias de vida distintas num restaurante comunitário no centro de São Paulo; montar sua rede para dormir em comunidades afastadas da capital, no Maranhão, com dificuldade de acesso a serviço de saúde mesmo os de urgências; jogar bola e participar semanalmente de outras atividade com crianças ou jovens com necessidades especiais; conviver em uma comunidade quilombola com um povo que sempre foi discriminado na nossa sociedade; experienciar rituais e aprender a respeitar o modo de vida indígena em aldeias ainda bastante preservadas entre os Xavantes ou no Xingu; participar de mutirão de construção de casas emergenciais em uma favela; ler e brincar com crianças de uma EMEI ou internadas no HC. Essas são algumas das situações que os alunos podem experimentar na eletiva de Práticas em Cidadania ou nos trabalhos voluntários de Ação Social e que implicam a convivência com o outro, resultando em importantes reflexões, com objetivos específicos distintos na eletiva e no voluntariado.

Todas elas envolvem resistências, constrangimentos e afetos, o que torna o processo intenso! Permitem apurar o olhar para o diverso e reconhecer realidades das quais nossos alunos estão apartados, protegidos. É uma forma de se aproximar da desigualdade social, da discriminação racial, dos direitos de povos e cidadãos sem as mesmas condições. No relato de nossos alunos, percebemos o quanto essas vivências são marcantes e podem ser transformadoras. Isso aparece tanto na percepção do quanto damos valor ao supérfluo, como na compreensão da importância de políticas públicas no cenário nacional ou nos questionamentos gerados dentro da escola junto aos alunos da Educação de Jovens e Adultos, que sempre apresentam uma faceta do nosso país para alunos do curso regular: “Sempre ouvi músicas e vi filmes internacionais, sempre viajei para fora do país. O estágio na EJA mudou minha perspectiva. Eu aprendi a viver, ver e ouvir o Brasil, com pessoas que estão tão próximas da gente e tão longe, com as quais eu nunca tinha tido contato”.

O que atribui sentido a essas vivências são as leituras, os filmes, as discussões e as reflexões mediadas pelos professores que realizam esse trabalho e que permeiam o currículo todo, especialmente o Núcleo Comum. Por exemplo, nas aulas de Filosofia, nas discussões sobre a definição e a relação entre Natureza e Cultura e o processo de humanização como inserção dos indivíduos no mundo cultural, com o objetivo de levar os alunos a compreenderem mais amplamente o conceito de cultura, exercita-se a crítica ao etnocentrismo e sua base pseudocientífica, que é o evolucionismo social, e valoriza-se a diversidade, que é marca do mundo humano. Questões de gênero, a luta dos negros, as políticas de ação afirmativa, a produção cultural de protesto da periferia de São Paulo são temas presentes nas aulas de Literatura sobre obras dos séculos XIX, XX e XXI, nos cursos de História e Sociologia e nas discussões propostas pelas Ciências da Natureza. A atenção e o respeito ao outro, a necessidade de apurar o olhar e a crítica a respeito do diferente e sobre si mesmo e sua própria condição fazem parte da intenção formativa de todos os professores e permeiam o currículo do Ensino Médio.

Como uma forma de aproximar um pouco realidades diferentes dentro da nossa cidade e, ao mesmo tempo, contribuir com a boa formação escolar de alguns jovens que não teriam essa oportunidade, mantemos na escola o projeto Ipê, no qual ex-alunos se envolvem voluntariamente em dar aulas preparatórias para alunos de 9º ano de escolas públicas com o objetivo de prepará-los melhor para sua sequência acadêmica e para prestarem o exame de ingresso no Ensino Médio do Santa Cruz. Aqueles que conseguem passar no exame ganham bolsa integral para cursar os três anos no colégio, além de todo o apoio necessário para a empreitada. Já temos 10 ex-alunos que cursaram a escola por esse programa e, atualmente, eles são 13 alunos, distribuídos nos três anos. Desde o ano passado, contamos com a parceria do Instituto Sol, que amplia o trabalho realizado, e de alguns ex-alunos e pais de alunos que auxiliam no fomento às bolsas de estudo. Esses estudantes agregam muito ao ambiente da escola e promovem um encontro raro: podem se beneficiar de um estudo de excelente qualidade e trazem um novo repertório para colegas e professores.

Neste cuidado com a diferença, permanece um enorme desafio a ser enfrentado no Ensino Médio: o trabalho com a inclusão escolar. O Santa Cruz já realiza um trabalho consolidado de práticas inclusivas na Educação Infantil e no Ensino Fundamental. Aproxima-se a hora de o Ensino Médio realizar a sua parte. O que é necessário para dar sequência ao trabalho já desenvolvido no Ensino Fundamental? Como este nível de ensino, durante o qual se acentuam as marcas de exigência acadêmica, pode se adaptar para receber alunos com diferentes barreiras no processo de aprendizagem? São questões que exigem estudo e planejamento da equipe de coordenação, orientação e corpo docente e que começam a ser enfrentadas. Certamente esse é um dos alvos de muito trabalho de toda a equipe neste ano e nos próximos, para mais uma transformação nas nossas rotinas.

O Santa Cruz é uma escola de tradição e em movimento, que se mantém em consonância com seu tempo por preservar os valores essenciais à humanidade e se debruçar sobre as questões contemporâneas com uma perspectiva crítica e construtiva. Na etapa final da escolarização básica de nossos alunos, ampliamos as possibilidades de enfrentar nossas contradições e participar de ações que transformam pelo vínculo do convívio e da reflexão, que responsabilizam socialmente o cidadão, que sensibilizam o olhar, enfim, que despertam e fomentam empatia.

arrow_back Voltar para Notícias