O exercício do contraponto no Colégio Santa Cruz

Devemos dizer que o relativismo e o dogmatismo excluem igualmente qualquer discussão, todo diálogo autêntico, tornando-o desnecessário (o relativismo) ou impossível (o dogmatismo). BAKHTIN, Mikhail 1

Mikhail Bakhtin (1895-1975) é bem-vindo nestes tempos de monólogos ruidosos e desa­finados. Na era da comunicação aberta, tem sido difícil ouvir, quase impossível degustar, a beleza do som e do silêncio pulsando em livre compasso. O monologar vaga em círculos, surdo em sua pretensa autossuficiência. Ao afirmar a polifonia como condição da linguagem que permeia a complexidade humana, o pensador russo concebe a unidade do mundo ecoando nas múltiplas vozes que compartilham o diálogo da vida. Por isso é oportuno convidá-lo a participar das páginas que sintetizam nosso Colégio, neste Plano Diretor.

Palavras e ideias, textos e princípios nascem uns dos outros, refletem-se, estão repletos dos ecos de outros e outras. Qualquer ponto de vista ancorado em uma subjetividade somente emerge e produz sentido em intera­ção e confronto com outras subjetividades. A linguagem é sorrateira e plural, atravessa histórias e livros e se nega à circunscrição dos muros exclusivos.

Palavras são células de culturas, desse modo o organismo do conhecimento se modula na polifonia de nossos discursos e fazeres com uma metáfora emprestada da Música. Na fronteira dos diferentes códigos, o cruzamento de vozes constitui imagem polissêmica para músicos, literatos, filósofos e educadores.

Daí a inspiração e a presença dessa metá­fora, hoje, no proscênio da escola. É preciso afirmar a polifonia nestes textos que traduzem o espírito do Colégio Santa Cruz, não somente porque eles buscam convidar à diversidade e pluralidade de vozes e frases; mas, sobretudo, pelo que ela, polifonia, pressupõe de coesão, de harmonia, de consonância. Sim, coesão e consonância. A diversidade infinita da polifonia musical só é possível se estiver fundada nas re­gras da harmonia. A pluralidade de sons almeja, sempre, atingir o acorde perfeito.

Do gênio Pitágoras ao mestre Bach, o lega­do das escalas abraça a matemática (frações e logaritmos) e o ideal da consonância, ajustados ambos à beleza que nossos limitados ouvidos ocidentais conseguem perceber. As vozes se superpõem em um movimento expressivo li­vre, mas orientado por uma teoria de escalas e intervalos. Também as dissonâncias constituem eventos musicais. E estão previstas pelas com­binações em potencial dessa “gramática”. As dissonâncias estimulam o anseio pelo equilíbrio, estendem o prazer de esperar a tríade que con­clui a cadência ou a composição.

Nessa aproximação entre discurso verbal e musical, vozes e escola, é preciso lembrar que a referência em pauta é a música tonal, não a atonal, dodecafônica, nem mesmo as formas monofônicas que rejeitam até mesmo um tímido dueto. Nossa escola, tonal, traça seus limites na gramática dos princípios que a constituem; entretanto, assim como as dissonâncias trazem cor e brilho aos acordes musicais, nas bordas dos limites escolares é possível vicejar, sempre, o debate.

Tanto no universo da música quanto no do texto, aspiramos ao pluralismo de frases e temas coesos, que dialogam na dinâmica da tensão e do relaxamento, do clímax e do acorde — e do acordo — final.

Pertence à polifonia musical, ainda, a forma do contraponto, esse exercício complexo, difícil, engenhoso. É preciso mantê-lo no discurso e na vida escolar. Contraponto não significa polari­zação, contraditoriedade, sim ou não, direita ou esquerda. Isso seria uma visão bidimensional da música, da educação, do mundo e das ideias.

O contraponto é o entrelaçamento de melodias, de sequências musicais acordadas no pacto do diálogo, frases-melodias que conduzem o mesmo tema em altura e desenhos diversos. As diferentes linhas melódicas são simultâ­neas, interdependentes em seu livre cantar, encontram-se e desencontram-se em alturas e subtemas surpreendentes, buscando o acorde confluente, conclusivo.

Sentimos prazer em ouvir os contrapontos do velho Bach, bem como os dos sucessivos mes­tres, até os do cancioneiro popular contemporâ­neo. Todavia, temos dificuldade em exercitar o contraponto, em viver com o contraponto, em conviver com sua multidimensionalidade aberta, imprevista, plena de sons e sentidos. É dever da escola insistir nesse projeto de composição coletiva e reiterar o convite ao contraponto que pressupõe coesão, harmonia, liberdade de criação fundada no princípio universal de que diversidade não é confronto, menos ainda intolerância.

É preciso enfatizar a necessidade de ouvir e expressar contrapontos no concerto educa­cional que praticamos, respeitando os variados timbres dessa orquestra sinfônica que agrega centenas de mestres e se abre para todos os instrumentos e cantores que quiserem se juntar ao coro. O maestro que nos dirige – onipresente, virtual e abstrato – é a delicada utopia de educar com olhos e ouvidos críticos e livres.

O homem não possui um território interior soberano, ele se situa todo e sempre em uma fronteira: olhando para o seu interior, ele o olha nos olhos do outro ou através dos olhos do outro. BAKHTIN, Mikhail 2.

1 Problemas da Poética de Dostoiévski. trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, pp 78-79. 11 Plano Diretor 2016

2 Le principe dialogique. Paris: Seuil, 1981, p. 148.

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