Novo velho invento: das matrizes clássicas à modernidade

A interface da escola com a sociedade nutre a perspectiva comum de uma formação consistente e dinâmica para os estudantes, tanto quanto confronta a natureza da instituição escolar — sua estabilidade — com o fluxo variável e perpétuo dos eventos.

Os primeiros educadores da Grécia antiga foram os poetas — dentre eles, Homero, o mais ilustre e influente. Os versos da Ilíada e da Odisseia formaram suas gerações, resguardados pela memória oral coletiva. Segue-se Sócrates — o educador-filósofo, também sem escrita e sem escola, que se constituiu e imortalizou nos textos platônicos. Seu legado poderia ter-se dispersado aos ventos elísios, pois o conhecimento que professava não tinha a fórmula poética memorizável dos ritmos e rimas homéricos. Cada aula singular de Sócrates era um drama reencenado, sem registro que pudesse perpetuá-la em literatura. Platão — certamente criador em parceria — editou esses ensaios interrogativos e lançou as sementes, eternizadas pela escrita. Esses educadores primordiais geraram as matrizes da educação ocidental contemporânea. Somos herdeiros dos gregos e fiéis depositários do seu legado cultural, húmus em nossas raízes.

Entretanto, 2500 anos nos separam. Nos planos políticos das escolas de hoje, especial- mente as que se alinham a uma pedagogia humanista, é possível ler as entrelinhas da Paideia grega, como uma voz arquetípica transportada por um fio tênue. O eco daquela sociedade hoje se dilui em vibrações muito diversas; mas há frequências e sequências que permanecem daquela cultura nesta cultura e daquela teoria da educação em nossa prática escolar.

O conceito de Paideia (Educação) era ideal e filosófico; sua meta era a formação ampla e multidimensional do homem para a preparação de sua existência social na pólis. Analogamente, da Constituição nacional, passando pelos parâmetros ministeriais, ecoando em regimentos escolares, até chegar ao Colégio Santa Cruz, inúmeros documentos contemporâneos afirmam ser o objetivo essencial da educação a formação integral do jovem visando ao exercício pleno da cidadania.

Ética e política eram os fundamentos da Paideia. Seus conteúdos, a poiesis (criação) e a episteme (ciência, saber). O corpo de disciplinas consagrado a partir do século de Péricles constitui, ainda, o coração do currículo contemporâneo: a Ginástica, a Música (que inclui as atividades presididas pelas Musas, portanto um saber que abrange todas as artes, incluindo-se a Poesia); as Matemáticas (Geometria, Cálculo, Astronomia); o domínio da palavra oral e escrita visando às virtudes (Retórica, Gramática, Ora- tória e Dialética).

Para Sócrates, a substância do conhecime to é o inteligível (e não o sensível) e seu sentido é a vida coletiva (e não a individual). O saber é matéria da inteligência, da razão do homem livre, não submisso às exigências dos sentidos. Todo conceito, necessário à construção do conheci- mento, nasce do processo dialético, formalizado no diálogo engendrado pela pergunta precisa, que desconstrói a aparência e o senso comum.

O lema nuclear da escola socrática, conhece-te a ti mesmo, sintetiza esse binômio: saber e coletividade. A forma verbal no imperativo se dirige a um destinatário que representa uma categoria universal, o homem como ideia. A consciência da ignorância, por sua vez, é afirmativa, supõe a disciplina de superá-la pela aquisição da ciência. Instrução jamais se confunde com a imposição de uma doutrina. O mestre só faz iluminar o conhecimento que é gestado pelo sujeito, aluno das próprias formulações.

A Ética, sempre vinculada à Política, pressupunha que a conduta moral não era uma reação à lei ou uma sujeição à coerção externa, mas uma construção interna individual. A Ética derivaria necessariamente da vida coletiva, como se a pólis se transferisse para a consciência de cada homem. A finalidade última dessa Ética humanista e política seria a Virtude: a um só tempo o bem e o belo, ambos alcançados pela via do conhecimento e da razão.

Se nos reconhecemos nesse amplo escopo filosófico e a partir dele vislumbramos nossa escola — o Santa Cruz — como criatura familiar à concebida pela Paideia, o que nos diferencia,

200 gerações depois? De um lado, sabemos ser necessário afirmar o vínculo com um princípio primevo, bem como é seguro buscar a fonte dos postulados que abrem os planos diretores contemporâneos. De outro lado, é libertador perder-se e alterar as rotas, bem como é revigorador desfazer e recalcular os mapas arcaicos e imprecisos.

O ponto crítico está no equilíbrio entre essas duas forças. Equilíbrio difícil e frágil, precário. A opção unilateral por um dos polos seria mais simples. Por exemplo, compêndios propiciam conforto, e certezas são pacificadoras em uma escola validada pela tradição funcional e bem sucedida. Na outra ponta, a busca obstinada da vanguarda e da transformação radical da escola dispensa a reflexão e o trabalhoso tecer da linguagem e da história.

O Colégio Santa Cruz faz a escolha mais consistente, promissora e exigente. A escolha pelo equilíbrio delicado implica ininterrupto esforço de revisão e reescrita do projeto original à luz de novos conhecimentos ou eventos inesperados. A reflexão sobre o passado força nossos educadores a ouvir os sons da paisagem presente. Paralelamente, eles concluem que o ideal da teoria impressa por vezes se inviabiliza na prática possível.

Neste início de século XXI, imaginamos o eterno Sócrates peripateticamente desconstruindo por argumentos e ironias as opiniões inconsistentes, pergunta sobre pergunta, cuidadosamente preparada e dirigida a cada aluno do exíguo grupo de eleitos… Eis um êxtase experimentado pelos professores de hoje em raros episódios. A escola socrática no possível de hoje exercita um método menos socrático.

A pergunta sucessiva e o diálogo que partejam o conhecimento necessitam de recursos técnicos que lidem com a polifonia. Sem sentimento de culpa sobre a impossibilidade física dessa pedagogia exclusiva, afirmamos competentemente nosso cotidiano coletivo de aulas em coro, em que cabem igualmente belas alternâncias de solo e silêncio. Em cada sala de aula com até 42 alunos, multiplicada por seis em cada uma das 14 séries, buscam-se formas de amplificar as vozes e distribuir as perguntas.

Não obstante a condenação que o imenso contingente de críticos recentes da escola proclama com relação a “formas arcaicas de ensino”— por exemplo, a conhecida aula expositiva — esta constitui, de nosso ponto de vista, também uma opção adequada à pedagogia recente, tanto quanto são legítimas as instalações destinadas aos estudantes cibernautas, habitantes — como nós, educadores — da cultura em rede que reciprocamente nos habita. Da pedra grega às lousas digitais, das carteiras individuais aos anfiteatros semicirculares multimídia, dos cadernos aos tabletes e congêneres, da ágora ampla aos pátios restritos — tecnologias não têm autonomia nem fazem sentido sem as pessoas e seus discursos. Cada aula é um encontro, traz uma proposta e cria significados: sua virtude e validade derivam do alcance de comunicabilidade, de geração da crítica e de informação operacionalizada. Há os cursos que se alimentam da palavra, outros que se expressam em corpo, cores, sons; outros que formalizam o conhecimento em símbolos, outros ainda que projetam e constroem objetos — bem como há aqueles que aderem a todos esses mananciais pedagógicos simultânea ou alternadamente.

Procuramos ainda no Colégio Santa Cruz preservar um laço com a ideia socrática de libertar as disciplinas do dever da funcionalidade e utilidade, elegendo como pressuposto do conhecimento o valor em si de cada objeto. A ética e o processo argumentativo percorreram os séculos e ainda constituem o coração curricular contemporâneo, aliado ao princípio da construção de um livre pensar. Mas, a par da formação básica constituinte dos postulados educacionais que podemos chamar de históricos, o currículo atual busca a leitura das contradições do tempo presente, a compreensão profunda das angústias humanas presentes e a consolidação de um compromisso com a sociedade futura. Para além da pólis, trata-se de cultivar uma ética planetária, que inclui o vínculo com a humanidade ainda não gerada. Os temas socioambientais são um exemplo dessa ampliação curricular necessária à escola atual.

Daí esse princípio do Colégio Santa Cruz, fundante e ao mesmo tempo aberto, que enfatiza as conexões ancestrais ao mesmo tempo em que demanda que se olhe adiante, iluminando e definindo os caminhos da contemporaneidade.

Confronto entre indivíduo e projeto coletivo: ética do dever e princípio do prazer

O conceito de poiesis (criação), um dos conteúdos metodológicos da Paideia, incluía o jogo, compreendido como atividade lúdica constitutiva das virtudes. Entretanto, a finalidade desse recurso reafirmava o princípio de uma formação amparada, sobretudo, na razão e na ética social. O prazer cabia em uma dimensão mediada pela temperança e pela virtude do autodomínio, da contenção dos impulsos.

A escola na modernidade, com o suporte e reforço das vozes sociais externas, depara com a premissa de que o prazer é condição e fundamento para o processo de ensino e aprendizagem, e que avanços na pedagogia incluem necessariamente esse princípio. Motivação, sedução, novas tecnologias, liberdade curricular, ludicidade são termos e temas presentes em ensaios de psicologia da educação e em parâmetros escolares, seja como tópicos condicionantes da eficácia do conhecimento, seja como justificativas (caso ausentes) para o desencontro entre professor e aluno, evasão, retenção e indisciplina.

De modo geral, as crianças são naturalmente motivadas por aprender; a escola é um espaço de desafios em que ela exercita seu desejo de crescer. Raramente os professores dos cursos Infantil e Fundamental 1 enfrentam a desmotivação pelo conhecimento por parte de seus pequenos estudantes. A inquietude começa a surgir em meio à adolescência e por vezes atinge pontos críticos no final do Ensino Médio: no li- miar da escolha adulta, no turbilhão do tornar-se adulto, na consciência da perda edênica.

Freud interpreta a ânsia de saber infantil como uma retomada incessante da pergunta primordial — “De onde eu vim?” — e aplica o conceito de sublimação ao investimento libidinal que acompanha a ânsia pelo conhecimento e pela investigação. Assinala, ainda, que a gênese da criação adulta encontra-se nos jogos e brincadeiras infantis. O prazer obtido pela criança em suas atividades lúdicas se constrói sobre uma subjetividade plena de trabalho não necessariamente recreativo. Isto é, a criança vive suas brincadeiras com seriedade absoluta, experimentando a verdade de um real provisório no prazer obtido pelo jogo. Na vida adulta, não se renuncia ao prazer experimentado na infância; há, sim, transfiguração do prazer e do jogo em formas compartilháveis pela cultura e pela sociedade. Ficção, humor, criações livres retomariam esse fio primitivo da infância. Além dele, o conhecimento — Arte e Ciência — pode se constituir um substitutivo ilusório, porém eficaz, do mal-estar da maturidade.

Se em Sócrates a felicidade se projeta na existência social — estendendo os limites da subjetividade para a pólis, nas sociedades posteriores essa condição se altera.

O prazer, a alegria e a felicidade não são reconhecidos como fundamentos legítimos das ações individuais, embora sejam constituintes do humano. A racionalidade e a consciência de finitude compartilham em cada homem o espaço do desejo e da busca da satisfação. Não há possibilidade de renúncia espontânea a uma parte de si. Entretanto, é o equilíbrio dessas forças que permite a decisão sobre uma ação moral em que a vontade possa redescobrir em suas próprias entranhas a motivação de que a cultura tantas vezes parece despida. Trata-se de crescer, humanizar-se, árduo trabalho que a escola assume, em parceria com cada um de seus alunos.

Nessa parceria convivem, quase sempre em confronto aberto, o prazer e o dever. Por um lado, os professores assumem um compromisso tácito e interno com o despertar e a manutenção do interesse em torno de seus temas e aulas. Entretanto, o sentido e a beleza dos objetos e da vida não são imanentes, mas partem de cada sujeito, que instila e instala sentido e beleza em cada vivência, em cada ser ao seu redor. O prazer e a vontade também são dialéticos, dialógicos e demandam intenso investimento pessoal.

“Ante os portais da excelência, os altos deuses puseram o suor” (Hesíodo).

Eis a representação do esforço pessoal preconizado pela escola socrática. Ontem e ainda hoje, o conhecimento não pode ser construído sem esforço. Nenhuma escola, nenhum ensino é natural. Caso se modificasse completamente a cultura escolar, visando torná-la um parque propício aos desejos particulares e à formulação de um currículo livre e original… seria possível subsistirem a filosofia, as ciências, a literatura, a matemática, a história? Sem esse corpo milenar, a educação humanista perece.

No espaço aparentemente árido da escola brotam a crítica e a polêmica, o humor e o protesto, a delicadeza e a invenção. A imaginação é capaz de preencher os vazios da vida ao mesmo tempo em que responde criativamente à sua indeterminação. As atividades criativas e a fantasia se alimentam da experiência, bem como fertilizam a realidade e geram o prazer. A escola é renovável.

O equilíbrio entre essas instâncias — passado e presente; dever e prazer — constitui uma experiência real, no Colégio Santa Cruz. Nesta comunidade em perene movimento, as oposições se conciliam amparadas por um pacto implícito nas ações educadoras: refletir atentamente sobre os postulados educacionais fundantes da escola, acolher o movimento imprevisto da vida e apreender a linguagem mutante das sucessivas gerações de estudantes.

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