Experiência e valores no tempo e espaço da escola

“A amizade conduz sua dança ao redor do mundo,
convidando todos nós a despertar para agradecer”.
(Platão, O banquete)

Toda escola necessita de um projeto dinâ­mico e consistente. Um bom acervo teórico sus­tenta tal projeto, mas o que o anima e o torna realizável é a experiência humana — vivida e compartilhada. A experiência do passado e do presente, aliada à experiência que aponta para o futuro são a colheita farta, perene da edu­cação.

Particularmente, há duas experiências, re­cen­tes, que inspiram este texto. A primeira se reporta à seleção que supervisionei, nos meses de setembro e outubro, dos candidatos às va­gas remanescentes para o 1º ano, o 3º ano e a 5ª série de 2010.

Nesse processo de seleção, os pais respon­deram um questionário com vários itens. Uma das perguntas era a seguinte: por que escolhe­ram este colégio para trazer seus filhos? Foram tantas as respostas semelhantes, que não pude deixar de considerá-las uma referência essencial a nosso trabalho. Em torno de 90% dos pais afir­­maram que compartilhavam dos valores desta escola. Que são valores, quais valores?

Esses pais se pautam em uma busca: a de uma concepção de mundo e de relações pes­soais que possam ser permanentes, mesmo em um tempo de perdas de referências, que nos deixa inseguros, carentes de respostas. De nos­sa parte, então, quais são os valores milenares que procuramos edificar em nosso cotidiano es­co­lar, como se fossem um axioma da educação?

A outra experiência diz respeito à aquisi­ção pela escola, em novembro passado, de um Kindle. O Kindle é um livro eletrônico. Um retân­gulo branco, com uma tela cinza, que serve para baixar e ler obras literárias, jornais, revistas. O coordenador do Centro de informática me pediu que testasse a máquina recém-nascida para avaliar sua utilidade no Colégio, ou pelo menos em nossa biblioteca. Em princípio achei que o Kindle estaria muito distante de um uso em larga escala. Mas é interessante e promissor. Vamos lendo o livro, virando suas páginas virtuais com um clique, enquanto confirmamos o significado da palavra no dicionário e fazemos anotações sobre o texto.

Antes mesmo que eu completasse minha primeira leitura no Kindle, soubemos do lança­mento de um concorrente: o Nook. Uma semana depois de comprarmos o primeiro, já nascia um similar, pela metade do preço, mais memória etc. Com um chip de 16 Gigas ele armazena 15 mil volumes. Nossa biblioteca do Colégio tem apenas 3 vezes esse número e cabe em três chips. Cem livros são armazenados em um espaço equiva­lente à ponta de um lápis. Não dá para duvidar que esses livros eletrônicos alterarão as formas de trabalho de pesquisa e os projetos arquite­tônicos de futuras bibliotecas. As enormes es­tantes possivelmente se tornarão desnecessá­rias, e o espaço de uma biblioteca talvez venha a agrupar estudantes em projetos coletivos, interações de outra ordem, com uma rapidez e enorme facilidade em recorrer a qualquer obra contida nessas peças leves. Quantas bibliotecas de Alexandria poderemos ter espalhadas pelo mundo? É uma possibilidade de fato.

Mais que possível, é belo. Essas duas expe­riências exemplificam o passado e o futuro se entrelaçando no espaço da escola: da Grécia Antiga ao Kindle ou ao Nook. Os valores são per­manentes, embora tantas vezes machucados e esquecidos. O conhecimento é permanente, in­clusive em seu princípio de transformação pe­rene. Seja grafado na pedra, nos pergaminhos perdidos, nos embolorados volumes, nas edições que perdem a validade com novas ortografias, ou finalmente na telinha de um livro eletrônico.

A expansão do conhecimento é a revolução perene do homem. Antes da imprensa, a Igreja definia com seus copistas quantos exemplares desta ou daquela obra estariam disponíveis para o mundo: quase nada, para quase ninguém. De­pois de Gutemberg, as obras e seus conteúdos se multiplicaram. Revolução de tal monta só foi possível séculos mais tarde, com o computador e as redes de comunicação planetária. E a escola se abre, se refaz, se questiona, busca novas linguagens.

As famílias buscam na escola o permanente, que se expressa nos valores que sustentam a pedagogia e a educação, e buscam também respirar os ares do futuro. São dois exemplos dessa polaridade que dinamiza a escola. O fu­turo está em curso sustentado pelo passado. E o presente desta escola para a qual vocês tra­zem seus filhos? Trata-se de um presente anco­rado no passado — a própria história da civili­zação e dos valores humanistas — e que ao mesmo tempo abre os olhos para o futuro. Neste presente se movimentam esses dois polos.

Quais são os valores que nos constituem como educadores?

O ponto de partida de nossa humanidade é o amor, semeado por nossos pais. Se não tivéssemos sido amados, não saberíamos amar. “A graça de ser amado precede a graça de amar e a prepara”, diz o filósofo Comte-Sponville². Essa preparação se faz na e pela família, esse núcleo em desmontagem e transformação, que ainda faz caminhar o mundo. Entretanto, embora essen­cial, esse amor familiar não basta para educar os filhos. Principalmente na escola.

Depois de ser amado, a lenta aprendizagem de amar escapa para fora da família e se dirige para o mundo. Todos nós sabemos, não sem alguma dor em meio à alegria de ver nossos filhos crescerem, que não possuímos nem guar­damos nossos filhos; nós os criamos para partir, para que nos amem em outros lugares, outras pessoas e de outro modo, para que façam filhos, e para que a vida continue.

Desse valor essencial do amor nascem os demais, que precisamos construir na escola, nes­se lugar privilegiado de troca de experiência e conhecimento do mundo e dos outros. A ideia de humanidade, em que todos os homens estão ligados, é o que os gregos do distante passado chamam de filantropia. Eles a definem como uma “propensão natural a amar os homens, uma ma­neira de ser que leva à benevolência para com eles”. Uma universalização da amizade, um elo que liga todos os homens singulares, em nome de sua humanidade comum. Como não amar quem se parece conosco, quem vive como nós?

Na escola se aprende essa espécie de amor, pela experiência, mesmo que ela seja difícil e cheia de tropeços. O aprendizado por meio da experiência de uma coletividade. Na escola, aprende-se a separação e a insegurança, mas tam­bém se vive o encontro e sustentação por meio do outro; vive-se a disputa e o conflito, mas também se adquire o conhecimento das pró­prias capacidades de superar a frustração por meio da palavra e do convívio; vive-se a compe­tição e o medo, mas também a experiência da colaboração e da coragem adquiridas pela ami­zade e pela solidariedade; vive-se o desconhe­cimento e a fragilidade, mas também a alegria de aprender e a força do conhecimento que se constroi pela pergunta e pela resposta do outro.

Em um de seus ensaios, o filósofo alemão Walter Benjamin³ relata a parábola judaica de um velho que, no momento de sua morte, revela a seus filhos a existência de um tesouro enter­rado em seus vinhedos. Depois de sepultá-lo com todas as honras, os filhos se põem a cavar em busca da herança, mas não encontram qualquer sinal do tesouro. Com a chegada do outono, porém, as vinhas produzem com rara fartura. Os filhos, então, compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: “a felicidade não está no ouro, mas no trabalho, na ação, no fazer, no viver”. Os filhos aprende­ram que o tesouro era na realidade um valor, uma virtude da própria terra: sua fertilidade. Essa parábola nos relata a importância da busca, mais do que o resultado. A sala de aula, os pá­tios, os jardins da escola são os primeiros lugares em que, “cavando”, as crianças e jovens come­çam a se buscar. Essa busca constitui a expe­riência de iniciar algo novo e de lentamente come­çar a aprender a liberdade.

É nesse lugar de vivência e criação — a escola — que se desenrolam mais intensamente as articulações e contradições entre o eu e o outro, entre o passado e o futuro, entre a tradi­ção e a revolução, entre as ideias e as opiniões das pessoas. Os valores podem ser ensinados, mas é bem mais pelo exemplo do que pelos livros. E mesmo os livros. É preciso cavar os li­vros, cavar a biblioteca em busca de tesouros, nossa herança precisa ser conquistada pela ação, pela experiência.

O valor máximo de pertencer à espécie humana supõe nossa capacidade de amar e de nos identificar a partir do outro, de uma cole­tividade. Capacidade de ser solidário. Esta pala­vra, solidário, guarda o significado original de in solido, isto é, “para o todo”. Um corpo sólido é um corpo em que todas as partes se sustentam, em que as moléculas são mais “solidárias” do que nos estados líquidos ou gasosos, ou seja, tudo o que acontece com uma acontece também com a outra ou repercute nela. A solidariedade pressupõe uma comunidade. Na escola apren­de­mos a ser solidários pertencendo a um mesmo conjunto e partilhando uma mesma história. A solidariedade é o que distingue uma sociedade interdependente de uma multidão desconectada e solitária em seus próprios interesses indivi­duais.

Neste presente, nesta escola, em que cada aluno trilha sua porção de um caminho de 14 anos que amarra o passado ao futuro, pleno de tecnologias e novidades, cabem as imortais palavras que o filósofo Epicuro deixou gravadas na obra de Platão, “O banquete”.

“A amizade conduz sua dança ao redor do mun­do, convidando todos nós a despertar para agradecer”.

Agradecer porque existimos, porque existe o universo e o conhecimento. Essa gratidão é também uma virtude, pois declara a capacidade de amar que conduz nossa vida, que dá sentido a ela, a nosso trabalho, a nossa experiência, a nossa capacidade de transformar o mundo sem destruir a essência de que ele se alimenta.

¹ Texto baseado na palestra aos pais dos alunos ingressantes na Educação Infantil-2010, realizada em outubro de 2009.
² COMTE-SPONVILLE, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
³ BENJAMIN, Walter. “Experiência e pobreza”. In: Obras escolhidas – I. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1987.

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