A escola além dos muros: sobre a integração e a permeabilidade do currículo

A educação é um processo social, é desenvolvimento. Não é a preparação para a vida, é a própria vida.

(John Dewey. How We Think. Boston: Heath & Co., 1933)

 

No Ensino Fundamental 2, organizamos o curso por disciplinas e, portanto, o aluno é introduzido ao vocabulário, à gramática, a conceitos e procedimentos de linguagens interpretativas do mundo. Assim, ocorre a substituição da pro­fessora polivalente pela equipe de professores especialistas, e essa passagem é uma das mar­cas desse segmento educacional. No entanto, gostaríamos de iluminar outros dois aspectos fundamentais do nosso trabalho: a integração curricular na abordagem dos grandes problemas contemporâneos e a permeabilidade do currícu­lo às demandas dos alunos. O que exatamente significa dizer que o currículo do Ensino Fun­damental 2 busca integração e permeabilidade?

É afirmar que o currículo intenciona aproxi­mar os conteúdos desse ciclo escolar, que podem parecer um tanto áridos, da realidade dos alunos, reorganizando-os e contextualizando-os a fim de atribuir-lhes novos sentidos. Colabora para isso a integração curricular, que nada mais é do que a busca por pontos de contato entre as diversas disciplinas. Dividir os saberes em disciplinas é algo desejável, pois ajuda a organizá-los, ensiná­-los e aprofundá-los; ocorre, porém, que essa divisão, com todas as suas vantagens, traz um risco de origem: cria no aluno a impressão de que os conhecimentos são excessivamente abstratos, com pouco diálogo entre si e, portanto, pouco aplicáveis à complexidade dos problemas do mundo real. Reintegrar em um contexto perti­nente os saberes especializados das disciplinas sofistica a metodologia, enriquece as abordagens e é um caminho para estabelecer, na consciência do aluno, a relação entre o conhecimento con­ceitual, abstrato, e a vida concreta.

Para alcançar esse objetivo, cada série elege eixos de trabalho comuns a todas as disciplinas, potencializando esforços no desenvolvimento de certas habilidades, procedimentos e valores que intencionamos coletivamente desenvolver. Esse trabalho de integração não ocorre espon­taneamente e sem esforço. Pelo contrário, é fruto de reflexões, debates, estudos e iniciativas no sentido de aprimorá-lo ano após ano. É o decantar dessa intensa troca em equipe que dá densidade conceitual, metodológica e qualitati­va ao projeto. Quando essa sofisticada costura está bem-feita, percebe-se que o aluno é capaz de falar com clareza e consciência de seu per­curso e suas aprendizagens. Se cada disciplina tem que estabelecer uma narrativa coerente e interessante em seu curso ao desenvolver os conceitos e os saberes pretendidos, as parcerias e os projetos devem proporcionar a reverberação de campos de investigação a partir de múltiplos olhares e com o aporte de vários campos do conhecimento.

É certo, porém, que a tentativa de integrar os conhecimentos não pode, sozinha, fazer o currículo se aproximar da experiência concreta do aluno. É preciso, também, que a equipe se mostre disponível, capaz de escutar atentamente as demandas dos estudantes e de ser sensível a elas. A isso damos o nome de permeabilidade do currículo: o trabalho de identificar inte­resses, anseios e aflições dos educandos e de problematizá-los, trazendo-os para o projeto pedagógico. Nós temos, é certo, o planejamento de nosso percurso muito bem estabelecido, seja pelos conteúdos que nos comprometemos a cumprir, seja pelas habilidades e competências que queremos desenvolver. No entanto, somos permeáveis ao que nossos jovens nos trazem como questões: os problemas das cidades, as dis­cussões ambientais, o retorno das epidemias e as questões políticas e de gênero são apenas alguns desses exemplos. São suas inquietações que nos dão pistas, muitas vezes, do melhor caminho a seguir. Quando a equipe se mostra aberta a es­ses anseios, uma sinergia muito especial ocorre: professores e alunos tornam-se parceiros, ainda que em posições distintas, em uma aventura na qual a aprendizagem e a experiência ocorrem genuinamente. Poderíamos dar vários exemplos disso, mas, no ano passado, um deles foi mais emblemático que todos: o Piauífest.

Esse festival ocorreu no final de 2017, como coroamento de uma série de esforços da equipe e dos alunos; para relatá-lo, porém, é preciso retroceder um pouco mais, ao mês de maio, quando ocorre o Estudo do Meio. Há alguns anos a equipe de professores do 9º ano esmera­-se em lapidar um projeto de Estudo do Meio que convida os alunos a olharem com curiosi­dade para uma realidade aparentemente muito distante, a do sertão brasileiro, permitindo que ampliem consideravelmente a representação da diversidade característica do nosso país. Esse estudo propõe uma imersão de sete dias nessa realidade, visitando vários locais e comunidades, privilegiando o convívio com a caatinga, com outras formas de ser e pensar o mundo, com resquícios de épocas distantes. Propomos que os alunos estudem diferentes formas de ocupação do espaço no sertão e seus impactos ambientais, econômicos e sociais, com olhar crítico para o discurso do desenvolvimento sustentável e do progresso. Para isso, é importante que eles investiguem esse bioma e suas características, considerem se as políticas públicas e a tecno­logia podem transformar, e em qual sentido, o sertão, e conheçam quem são os sertanejos e as sertanejas, como eles vivem, suas dificuldades, anseios e aspirações.

Para essa viagem, há um investimento grande em atividades preparatórias, tanto de repertório conceitual como de sensibilização para várias questões que encontraremos em campo. Os alunos voltam muito mobilizados por essa rica vivência e com uma vontade enorme de compartilhá-la. Várias têm sido as formas encontradas para dar vazão a essa necessidade: de plenárias a mostras de instalações que bus­cam de maneira poética e artística comunicar as vivências e as reflexões dos alunos.

Nos últimos anos, temos percebido um impacto de outra qualidade nos alunos, teste­munhando sua ânsia de, no regresso, não deixar o Piauí para trás. O bonito desse processo é que, a cada ano, cada turma de alunos sensibiliza-se com uma questão e mobiliza-se em torno dela de formas e intensidades diversas, na tentativa de realizar um gesto concreto. Já houve ano em que ajudar o Parque Nacional da Serra da Capi­vara a continuar suas atividades foi o que mais envolveu os alunos. Eles fizeram campanhas de divulgação para o Parque, organizaram shows para arrecadação de fundos e criaram um site para promover ações, encontros e discussões em torno dessa causa.

Em 2017, a viagem foi outra. Os alunos dei­xaram-se tocar pelo encontro com a comunidade quilombola da Lagoa das Emas. Conhecer a sim­plicidade e a beleza daquela comunidade que os recebeu com tamanha ternura, mostrando-lhes um pouco de sua história, suas tradições, suas crianças e sua escola, causou-lhes um impacto que nunca havíamos antes observado. Os alunos puderam depreender da fala dos jovens de lá que estes sentiam falta de um espaço para leitura, estudo, capoeira – enfim, para convivência.

Para além das atividades escolares do pós­-campo, um grupo de alunas, apoiado por suas famílias, mobilizou-se com muita autonomia e realizou, na volta da viagem, um bazar com suas roupas seminovas para arrecadar fundos para essa comunidade. A série decidiu que o dinheiro arrecadado na Festa dos Esportes também seria destinado para esse embrião de projeto.

Ao retornarem das férias de julho, sur­preendeu-nos um grupo de alunos sugerir, já na primeira semana de agosto, que realizássemos um festival para arrecadar fundos para viabilizar o centro de convivência da Lagoa das Emas e di­vulgar o Piauí. Argumentavam que, se pudessem realizar algo envolvendo a música que os alunos curtem tocar e ouvir, conseguiriam atingir vários objetivos em uma empreitada só.

O projeto era ambicioso, difícil de realizar, iria requerer muito trabalho coletivo, muitas pessoas, colaboradores e um apoio grande do colégio. Ao perceber que não estávamos re­cuando e que estaríamos lá para apoiá-lo, mas sem fazer por ele ou protegê-lo de eventuais decepções, o grupo ganhou coragem e perse­verou até o fim. Muitos foram os impasses. Os alunos debatiam, por exemplo, quais decisões deveriam ser compartilhadas; como atuar democraticamente e, ainda assim, realizar as ações nos prazos necessários; como promover o acesso aos acontecimentos para que todos se sentissem responsáveis pelo projeto.

Enfim, muitos tropeços e aprendizados de­pois, o Piauífest aconteceu e superou as expecta­tivas dos próprios alunos. Foi incrível ver, durante o evento, a mobilização de estudantes de várias séries, o respaldo generoso dos alunos do Ensino Médio, o apoio da direção do colégio, a presença firme da equipe inteira de professores, o trabalho competente dos funcionários e a participação das famílias que, junto com seus filhos, prestigiaram e vibraram com o que eles tinham conseguido realizar. Foi, de fato, uma tarde muito especial por sua força e por todo o processo educacional não convencional que ela representou.

No entanto, o projeto não parou por aí. Aliás, estamos só no começo. Ele extrapolou as fronteiras escolares habituais da organização por série e por ano para algo de maior fôlego, que não é de curto prazo. Temos, agora, alguns parceiros e muita mobilização no imenso desafio de realizar a construção do centro de convivência no interior do Piauí. Consideramos fundamen­tal que jovens estejam dispostos a se envolver coletivamente em projetos de maior prazo, lan­çando mão de um engajamento pessoal em uma experiência que promova o desenvolvimento de atitudes ligadas à cidadania, tão importantes para o futuro do País.

Essa é a radicalidade que pode ganhar a experiência educativa capaz de subverter algu­mas lógicas tipicamente escolares, construída a partir da escuta, da permeabilidade do currículo e da canalização de esforços no sentido do bem comum. É acreditar que se, por um lado, o co­nhecimento e a leitura crítica da realidade devem ser cultivadas na formação dos alunos, por outro, nela também a esperança precisa ser nutrida com delicadeza – e, como disseram os oradores da turma na formatura de 2017, não a esperança ingênua, que desmotiva a ação alimentando uma perspectiva fantasiosa, mas a que reconhece o que há de repulsivo e instiga a mudança. O sen­timento que, nas palavras de Santo Agostinho, “tem duas filhas lindas: a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão, e a coragem a mudá-las”.

Essa possibilidade é fruto da ousadia de uma equipe de educadores que se desdobra para propor um caminho que promova uma reflexão crítica sobre o mundo em que vivemos, que seja permeável e acolhedor aos anseios, aos estímu­los e às iniciativas dos alunos e que seja flexível o suficiente para que possa ser reinventado a cada ano.

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