Educação na Pós-Modernidade

Introdução: Diário de bordo

Em seu curso pelo mar, um navio é controlado por um leme, que deve conduzir a embarcação a termo, por um itinerário prefixado.

Entretanto, as ondas do mar têm movimento não determinístico.

Uma sucessão de vagas à direita, e o barco se flexibiliza à esquerda, cede à força para sustentar sua meta. O almirante antecipa um obstáculo e se desvia, para poder manter o curso; calcula o dinamismo das circunstâncias segundo os princípios da ciência e da experiência para atingir os resultados, chegar ao ponto final.

O homem busca essencialmente uma ordem sob e sobre todas as coisas e constrói teorias, cria instrumentos, elabora ideias e histórias, projeta instituições que expliquem o incompreensível, ou que controlem o incontrolável.

Porém, o marinheiro sabe que o leme precisa ser operado de acordo com os movimentos imprevistos, pois a rigidez levaria a nau a uma trajetória errante. A flexibilidade calculada desse pequeno instrumento pode ajustar o imenso corpo, balançá-lo em resposta às águas indomáveis.

A educação é o leme do navio em que viajam os jovens em sua formação. Há um acervo milenar de conhecimento e experiência que permite conduzir o barco pela imensidão, considerando-se padrões de comportamento da natureza e ainda os limites da máquina e dos marinheiros. Todavia, a resposta do leme a cada vaga é uma operação singular, nunca repetida, é um diálogo entre o comando do barco e as vozes do vento, da água, dos recifes, do tempo.

Estamos num veleiro. Por que não imobilizamos o leme? Por que não o travamos numa posição visando a um porto final?

Porque precisamos de um saber e um controle que considerem que não existe um mar de espelho. A vida nunca é um mar de espelho.

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Da modernidade à pós-modernidade: o itinerário da história

Muitos debates filosóficos se propuseram a interpretar o final do século XX e configurar o presente: em textos em que emergiram expressões como “globalização”, “diferença”, “distopia”, foi anunciada a era do pós-modernismo — nosso tempo.

Em decorrência do complexo processo histórico, econômico, político e cultural que marcou o século XX, a crítica pós-modernista afirma a inexorável falência do discurso que se pretende abrangente e uno, tradução de utopias e expressão de teorias e projetos universais. Desse modo, questiona-se a validade e a permanência da filosofia do iluminismo, do positivismo e do marxismo, bem como toda grande narrativa que se propõe a traduzir a totalidade do conhecimento ou representar um conjunto de verdades sobre o homem, o universo, a religião.

O pensamento pós-moderno descrê das ideologias da modernidade. Questiona a filosofia iluminista, centrada na razão, na ciência e suas tecnologias, supostamente capazes de emancipar o homem do pensamento dogmático e conduzi-lo a um estágio mais evoluído de sociedade e reflexão. Assinala a ineficácia — testemunhada em eventos históricos contemporâneos — do marxismo como enunciador de uma sociedade livre e sem classes, bem como de todas as explicações deterministas para a economia, a política e os movimentos sociais.

Para Lyotard, um dos primeiros pensadores da cultura da pós-modernidade, a aspiração a um saber totalizador, estruturado em um modelo singular de discurso e argumentação, não tem validade e consistência em um mundo marcado pela fragmentação cultural, pela contradição e pluralidade de pontos de vista, pela heterogeneidade social e impossibilidade de consenso cultural. A única substância capaz de definir a sociedade contemporânea seria, então, a “diferença”.

Paralelamente à crítica do “discurso onipotente”, outros filósofos — Derrida partindo de Nietzsche e complementando Heidegger — demonstram a inconsistência do pensamento binário, hierárquico, polarizado: bem e mal, certo e errado, puro e impuro, verdadeiro e falso. Esse terreno instável e relativístico atinge o âmago da tradicional concepção moderna (cartesiana e kantiana) de sujeito. Em lugar do ser autônomo e consciente — autor de sua ação política, de sua linguagem, de seu conhecimento — emerge a concepção de um sujeito contingente, complexo, construído a partir da própria história, das práticas socioculturais, dependente de um conjunto de forças excêntricas. Um sujeito não-terminado, em processo interdependente com o mundo que ele habita e com a linguagem que o constitui.

No campo estético, o pós-modernismo significa o fim do permanente movimento de ruptura com a linguagem estabilizada, da oposição entre tradição e vanguarda, da eliminação da fronteira entre alta cultura e cultura de massa, bem como inaugura o exercício da apropriação, a “releitura” e citação de obras do passado. As modalidades artísticas se entrelaçam, sem vínculo restrito com códigos e linguagens, sem programa formal, sem preocupação com os “ismos” das vanguardas do século XX.

Na área educacional, são questionados os currículos de tradição humanista e tecnicista, assim como os de tendência radicalmente emancipatória, sejam eles marxistas ou libertários.

Sob que justificativa? As ideias pós-modernas nascem de uma sociedade pós-moderna e dão voz a ela, organizam em conceitos o que no corpo social é a aparentemente caótica dinâmica da vida e do tempo. Nessa linha de reflexão, a instituição escolar é vista sempre vinculada ao poder, o que abre um campo de discussão sobre as finalidades da escola. Paralelamente, ao rejeitar um conhecimento universal e questionar a tradição filosófica e científica moderna — incluindo-se o ideário razão-progresso-ciência —; ao neutralizar a distinção entre cultura erudita e cultura cotidiana; e ao duvidar da universalidade de valores e conceitos, o pensamento pós-moderno intervém radicalmen­te na concepção de educação e de currículo.

Modernidade sólida e pós-modernidade líquida: os limites e a resistência da educação

O sociólogo Zigmunt Bauman analisa a contemporaneidade sob um viés bastante didático. Qualificando metaforicamente a pós-modernidade como “líquida”, ele a contrapõe à “modernidade sólida”. A “solidez” que constituía a sociedade anterior traduziria o movimento das gerações de desmontar continuamente a realidade herdada, com a perspectiva de transformá-la, torná-la melhor e novamente sólida.

Em contraposição, o movimento de desmontagem atual se realiza sem perspectiva de permanência. O estado da sociedade pós-moderna é “líquido”, pois o postulado que a regula é o da não-permanência, da incapacidade de manter a forma. Tudo é temporário e provisório. As instituições, quadros de referência, valores, modos de vida se transformam antes de se estabilizar, “solidificar-se” em costumes, cultura, verdades.

Desse modo, somos contemporâneos de uma percepção de mundo que descarta regulamentações e hierarquia de valores. Todas as sociedades se equivalem, do ponto de vista do bem ou mal, das virtudes ou vícios. Esse cenário ambienta novas propostas curriculares, por exemplo, fundamentadas nas diferenças culturais, já que a prioridade é o local, em contraposição ao global. A heterogeneidade é enfatizada, em detrimento de uma busca da voz coletiva e consensual.

Do ponto de vista da pedagogia, a pós-modernidade líquida é um desafio inédito. Se a voracidade consumista de hoje tem por característica não exatamente o acúmulo de objetos, mas sua máxima utilização e rápido descarte, por que motivo o acervo de conceitos e conhecimentos que constitui a escola não participaria dessa nova “lei universal”? Como conciliar a demanda por um tipo de conhecimento de rápida aplicação e consequente volatilidade com o conhecimento que é proposto por uma pedagogia baseada na solidez, na organização disciplinar? Como educar crianças e jovens em um mundo congestionado de informações, mas com pouco tempo e disponibilidade para a experiência do convívio e da reflexão?

O início deste século testemunha educadores em um impasse. Por um lado, há pressões de conselhos e avaliações oficiais, de formadores de opinião, de empresários que opinam sobre educação e a julgam, denunciando a impotência e lentidão da escola em acompanhar a dinâmica do mercado e as necessidades sociais. De outro lado, o silêncio ou o vozerio dos estudantes traduzem igualmente sua perplexidade diante de projetos de futuro sem consistência, diante de um mercado de trabalho imprevisível. No meio dessas duas forças, a instituição escolar ainda não é capaz de resolver a crise de seu papel crucial de tutora do conhecimento, nem de atuar com a mesma rapidez (e efemeridade) do mundo “softwarizado”.

Nas sociedades atuais, todos os excessos — de informação, opinião e trabalho — são abalroados pela carência aguda de tempo. A instituição escolar, em contraponto, busca realizar seus projetos de formação numa linha de tempo longa e lenta, considerando os 14 anos dos cursos infantil, fundamental e médio, bem como na unidade temporal de um ano letivo. Ora, a educação é um processo de humanização que aspira à caprichosa construção de um sujeito que faz escolhas e que se responsabiliza pela transformação — de si mesmo e do mundo em que vive. Portanto, considerando-se a extensão da vida humana em quase um século, é preciso cuidar do que perdura, do que estrutura o homem em sua travessia singular.

O pensador Walter Benjamin denunciava, em plena crise da modernidade do início do século XX, que os inumeráveis eventos que intervêm na existência humana não correspondem à incorporação das respectivas experiências. Os acontecimentos não se tornam significados, vivências, não são interiorizados, não transformam o sujeito. A “sociedade da informação” não gera a sabedoria, cujo sentido pleno abraça a noção de receptividade ao outro, de abertura a projetos que incluem a atuação consciente e a inclusão do (e no) corpo social. Em uma palavra, a experiência sólida da solidariedade se esvazia no cotidiano fragmentado pelos acontecimentos, pela liquidez da incerteza e solidão.

Desse modo, se nesta pós-modernidade é inevitável o convívio com a precariedade e a incompletude, a educação deve plantar suas metas no chão de uma cultura democrática, em que a pluralidade de pontos de vista e o livre-pensar possam constituir o húmus da vida e do bem comum.

Daí a formulação de que, especialmente nesse ambiente, a educação e a aprendizagem só fazem sentido se forem contínuas — por toda a vida — se forem assumidas como tarefa ilimitada para a formação dos sujeitos, em sua humana condição de incompletude. Ressalte-se, porém, que tal condição não significa a sujeição dos aprendizes ao ritmo acelerado das mudanças que ceifam as experiências, mas uma disposição às transformações de modo a acolher o tempo e adaptá-lo a uma semeadura humanizada.

Ou seja, não obstante as pressões externas e a efemeridade das instituições, das ideias e dos movimentos políticos, é preciso alimentar nos estudantes os valores da constância e do compromisso, da persistência e do trabalho, da autonomia e das relações humanas.

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A pedagogia no Colégio Santa Cruz: pluralismo e humanismo, permanência e transformação

O desdobramento da disciplina Religião em Catequese e Ensino Religioso marcou a passagem do Colégio Santa Cruz de uma escola confessional para católicos a uma escola católica aberta para não católicos, pluralista, do ponto de vista cultural, e ecumênica, do ponto de vista religioso”. (Pe. José de Almeida Prado, c.s.c.).

A presente afirmação de Pe. José é retirada de um texto que conceitua a Pastoral no Plano Diretor de 2012. Partindo de uma distinção necessária à precisa configuração educacional e filosófica do Colégio1, esse excerto expressa a possibilidade e a necessidade da conciliação entre a doutrina católica que orienta a instituição e sua concepção educacional pluralista, de defesa e respeito à liberdade de pensamento e demais direitos humanos.

Esse fundamento sustenta o projeto pedagógico do Colégio e permeia, com ênfases diversas, o currículo de cada curso, as atividades e projetos interdisciplinares, a atuação voluntária e os eventos culturais.

Desde sua fundação, os padres de Santa Cruz postulavam uma educação multidimensional de caráter humanista. Considerando os 60 anos que nos distanciam desse princípio — seis décadas que assistiram às profundas, imprevistas e velozes transformações nas sociedades em nível global —, é preciso retomar os conceitos iniciais, atualizá-los, reiterá-los. Embora vigorem atualmente propostas curriculares que julgam o “humanismo” de uma perspectiva crítica — ou seja, sua formulação educacional não expressaria mais as necessidades e as circunstâncias desta era pós-moderna —, nossa avaliação contínua consolida aqueles princípios como educacionalmente promissores e eticamente consistentes com nosso trabalho pedagógico.

Desse modo, é importante esclarecer o que entendemos — em linhas gerais — por humanismo no âmbito deste projeto educacional.

Do ponto de vista filosófico, o humanismo tem por eixo estruturante o indivíduo. A premissa humanista considera que a indeterminação, a liberdade, a escolha e a transcendência constituem a substância essencial do homem, em contraponto ao materialismo, que o define em seus liames com os determinantes biológico, econômico, psíquico e cultural. A ética humanista confere à razão humana a condução dos valores morais e se pauta pelo princípio da reciprocidade, pelo respeito à dignidade individual e pela inviolabilidade e sacralidade da vida.

Para o materialista, a ideia de transcendência é puramente ilusória. Independentemente da condição de ateísmo, ele defende uma ética da imanência, ou seja, não há um mundo além deste para nos dotar de esperança; a vida é o aqui e agora, neste espaço-tempo em que o homem não passa de uma espécie dentre outras.

Para o humanismo, a transcendência constitui o homem, mesmo de um ponto de vista laico e agnóstico. Isso porque o homem, em sua condição de liberdade essencial, distingue-se das outras espécies e é capaz de transcender a natureza para formular questões metafísicas e atuar em seu meio.

As premissas humanistas mencionadas se vinculam à concepção original do humanismo grego, inspiração e referência para o humanismo renascentista. Este, por sua vez, foi além da dimensão filosófica: deu suporte teórico e curricular a uma prática de conhecimento que renovou as universidades europeias no início do século XVI.

Em busca de saídas e aprimoramentos para o que consideravam o problema essencial da educação, ou seja, a formação do homem, os humanistas do Renascimento propunham o abandono dos valores e práticas medievais, inconciliáveis com o “mundo novo” que o ambiente social, econômico e cultural da Europa anunciava. Um realinhamento da espiritualidade cristã para as margens da educação supunha um necessário processo de secularização (em que a religião deixa de ser o elemento agregador). A laicização educacional deveria abranger tanto os conteúdos a serem ministrados nas escolas e universidades, como também os procedimentos de ensino.

Em termos curriculares, o espectro de matérias mantinha a distinção entre o que compete à racionalidade humana, quais os conhecimentos derivados do pensamento e da ciência humana (aritmética, geometria, música e astronomia; filosofia e história natural; retórica, gramática e lógica; moral), e o que diz respeito às coisas de Deus (a teologia, que trazia uma dimensão investigativa mediada apenas pelos religiosos). Esse conjunto disciplinar constituía as “artes liberais”, ou seja, o patrimônio dos homens livres, em que o conhecimento não está atrelado a uma utilidade prática, do mundo do trabalho.

É importante ressaltar que as “humanidades” de então não excluíam de seu escopo a matemática ou as ciências, como veio a acontecer, na segunda metade do século XX, com a distinção entre ciências humanas, exatas e biológicas. No currículo humanista do Renascimento estavam incluídas as Ciências da Natureza, com a fundamentação do método científico de Roger Bacon (século XIII). A rigor, todo conhecimento é do âmbito “humano” e todas essas disciplinas no decorrer da história do pensamento e da educação se articulam, se nutrem mutuamente. Tenhamos em mente as escolas humanistas europeias que educaram Freud, Poincaré, Bertrand Russell, Wittgenstein, Heisenberg, Schröndinger, cientistas e matemáticos com sólida formação em filosofia, ciências da natureza e história.
O aspecto mais relevante e perene da escola humanista renascentista e que conduz a pedagogia do Colégio Santa Cruz está na prioridade do conceito de sabedoria, em oposição ao que depreciativamente os renascentistas chamavam de “pedantismo” dos mestres medievais.

A erudição cumulativa, livresca e superficial configurava-se como uma autoridade falsa. O “saber quantitativo” da escolástica se dissolvia no paradigma renascentista de “sabedoria”, cujo modelo era Sócrates. O saber como quem busca a vida, sempre incompleta, o saber que se define na busca da verdade, na aproximação do que nunca se finaliza, porque atrelado ao diálogo, à ação livre, à atitude ética. Saber, então, não poderia ser memorizar nomes e teorias, citações de ideias alheias, retórica treinada e vazia. Saber seria uma disposição de abertura ao conhecimento infinito e um diálogo incessante que alavanca a lógica do bem pensar, vinculado a uma conduta virtuosa, honesta, isenta. No humanismo, conhecimento e ética andam juntos.

A formação multidimensional que o projeto fundante do Colégio Santa Cruz propõe se mescla às proposições humanistas, ou seja, a educação abarca todas as instâncias da humanização: a razão e o intelecto, a moral e a ética, a emoção e a sensibilidade, a memória e a criação do futuro. Não existe uma teoria pedagógica isenta de um conceito de homem e de mundo. Se concebemos o homem como um ser de transformação do mundo, seu processo educativo deve seguir um caminho coerente com esse princípio.

Nesse sentido, as perguntas corriqueiras sobre linhas pedagógicas — O Colégio Santa Cruz é uma escola tradicional? Ou seria liberal? Segue a orientação construtivista? —, embora revelem preocupações legítimas dos não iniciados em filosofia da educação e pedagogia, buscam respostas que tendem a um reducionismo prejudicial à tradução ampla e profunda dos fundamentos que constituem o ideário e a prática de uma escola.

No Colégio Santa Cruz, o axioma do pluralismo nos impede o fechamento para o que não conhecemos. Nosso movimento é o de refletir sobre cada nova e revisitada teoria, sobre cada método, sobre perguntas, dúvidas e propostas. Avaliamos a substância, a consistência e a eficácia de cada discurso e cada prática. Aprimoramos nosso projeto continuamente, sem assumir rótulos provisórios. Queremos o firme, mas também o aberto. Queremos os instrumentos conhecidos, e também a autonomia para resolver problemas novos, para os quais não há ainda instrumentos.

O que somos sem o chão da história? Que edifício cognitivo e epistemológico se constrói sem os alicerces do passado, sem a memória e o conhecimento que inumeráveis sociedades construíram em incontáveis dias? Quanto ainda nos falta, imersos na pós-modernidade hiperautomatizada, aprender com a simplicidade da escola socrática, sua arte dialógica do mestre eternamente aluno, do aprendizado infinito com a pergunta e o erro, da parceria perfeita entre o belo e o bom?

Por outro lado, a escola é dinâmica, reage a contextos incorporando novas formas de conviver, aprender e ser. O aluno agente, em busca da autonomia que esperamos dele, por vezes não cabe nas fronteiras do conhecido e compartilhado. É preciso, então, “ver com olhos livres”, rever-se e reconhecer-se em processo, em aprendizado ininterrupto e difícil, em confronto com nossa limitação e as múltiplas possibilidades do desconhecido.

Nossa educação possui um eixo consistente, metas precisas: a concepção e a pedagogia, o currículo, os procedimentos de trabalho, a organização da escola, a atuação extraescolar. Toda essa rede atende ao coletivo, pois a coletividade define uma escola. Simultaneamente, recorremos à flexibilidade sensata para a condução do imenso projeto, buscando atender às singularidades e aos eventos que costuram a dinâmica da vida, da história e do conhecimento.

Quando o humanista Erasmo de Roterdam, em 1512, escreveu De Ratione Studii et Instituendi Pueros, propondo uma revisão profunda na educação, seu foco se deteve na contraposição das extensas e superficiais antologias medievais dos clássicos (os “escritos pagãos”), que arregimentavam dezenas de autores e textos em suas páginas inumeráveis, com uma seleção moderna e mais criteriosa. Do repertório de Erasmo, constavam poucos “mestres”: aqueles que constituiriam as ferramentas propícias ao conhecimento em profundidade. Segundo ele, seriam poucos os suficientes e necessários à competência para ler as Sagradas Escrituras e consolidar a formação e o conhecimento: Heródoto, Homero, Virgílio, Eurípedes, Cícero e Esopo. O excesso impediria a compreensão do essencial.

Essa disposição ao aprofundamento humanístico em detrimento de uma abordagem quantitativa é, ainda hoje, uma referência. Um currículo faz escolhas, dentre os incomensuráveis arquivos da biblioteca universal. Escolhe os textos, conceitos e saberes destinados à permanência e agrega a esse patrimônio essencial o novo e o futuro.

A propósito, cabe uma referência sobre a área de Artes nessa concepção educacional. Na Antiguidade Clássica, arte significava qualquer habilidade artesanal ou procedimental; sem desconsiderar talentos individuais, a arte era sobretudo uma atividade que poderia ser aprendida, ou tecnicamente desenvolvida. Por isso, no currículo humanista clássico, a música ocupava um lugar de destaque, em detrimento das demais linguagens artísticas. Entretanto, as áreas de conhecimento são uma construção social e cultural, e é impensável organizar um currículo pautado nos valores que preconizamos no Colégio Santa Cruz sem o ensino da arte. Ela integra nosso projeto de educação, pois todas as linguagens abrigadas nesse campo — artes plásticas, teatro, dança, música e outras — constituem conhecimento, e não mera atividade técnica ou livre exercício de criação. A Arte integra o humanismo do Colégio Santa Cruz pois, além de um campo de conhecimento potencializador da cognição, é uma experiência inestimável de construção da subjetividade e da integração com a experiência coletiva humana, em todos os tempos.

Hoje, o pensamento curricular pós-moderno incorpora conteúdos novos, nascidos das contingências da sociedade contemporânea — por exemplo, a ênfase em estudos sobre o meio ambiente — a disciplinas que emergem de conhecimentos mais recentes e projetos interdisciplinares. Desse currículo atual fazem parte os estudos do meio, programas de voluntariado, bem como a experiência transdisciplinar por meio de temas que refletem sobre sexualidade, diversidade cultural, sustentabilidade, ética e cidadania, religiosidade. Paralelamente, o suporte pedagógico de tecnologias de comunicação e informação se operacionaliza em diferentes modelos de produção cultural e aprendizagem, fundamentados por teorias recentes de neuropsicologia e ciências cognitivas, cada vez mais aplicáveis ao cotidiano da educação.

Esse extenso programa educacional aspira a uma formação que resguarda a universalidade e se consubstancia em uma “gramática” perene, mas que instiga e apoia novas linguagens. Sem desconsiderar as demandas mais imediatas de vestibulares e outras avaliações que viabilizam o ingresso dos estudantes na vida profissional e adulta, a ação cotidiana de nossos educadores inclui essa instância pragmática, embora esteja sempre a caminho de um lugar que a transcende.

A solidez e a vitalidade da proposta pedagógica do Colégio Santa Cruz se alimenta dos mesmos princípios que considera sagrados em cada indivíduo, em cada estudante que cresce em suas salas e campus. Ou seja: o apreço ao conhecimento e a compreensão de seus limites; a fruição da arte e da literatura; o livre-pensar; a autonomia aliada à consciência de pertencimento social; a responsabilidade frente às próprias escolhas; o cultivo da solidariedade; e, finalmente, a alegria e o viço diante da beleza da vida, da amizade e do fluir do tempo.

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. Magia e técnica, arte e política; ensaios sobre literatura e história da cultura. In: Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, vol., 1994.
CHARBONNEAU, Pe. Paul-Eugène. A escola moderna, uma experiência brasileira: O Colégio Santa Cruz. São Paulo: EPU, 1973.
COMTE-SPONVILLE, André; Ferry, Luc. A sabedoria dos modernos. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
Zigmunt Bauman: entrevista sobre a educação. Desafios pedagógicos e modernidade líquida. Alba Porcheddu. Cadernos de Pesquisa, v.39, n.137, maio/ago. 2009.

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