Diversidade e organismo no Colégio Santa Cruz

A arquitetura como construir portas, de abrir; ou como construir o aberto; (…) construir portas abertas, em portas; casas exclusivamente portas e teto.
O arquiteto: o que abre para o homem (…) portas por onde, jamais portas-contra; por onde, livres: ar luz razão certa.
João Cabral de Melo Neto1

Em 24 de janeiro deste ano,realizou-se o Primeiro Congresso Interno do Colégio Santa Cruz. Esse evento consistiu em dezenas de oficinas conduzidas pelos professores para seus colegas, inaugurando um projeto de aprimoramento profissional e cultural baseado na interação entre os educadores de todos os cursos. A excelência do Congresso sugere sua continuidade em edições futuras, talvez com a abertura para outras instituições escolares. O texto que segue contextualiza o evento na história do Colégio, considerando especialmente o projeto da direção geral, visando refletir sobre a unidade educacional da instituição.

Como se desenham e se apagam os caminhos e os nichos em um espaço previsto para múltipla convivência? Quem traça e quem dissolve a linha e a fronteira, quem dirige a luz e a sombra, fecha as portas e encima o teto, arma as prateleiras, abre os livros e as janelas, tempera a brisa, a cor?

Quando conheci o Colégio Santa Cruz, havia certo rumor entre seus habitantes: “há uma rua que atravessa a largura do campus e separa a escola em duas. De um lado da faixa, ergue-se o Ensino Médio; do outro lado, espalha-se o Fundamental. Delimitados pela noite, os adultos fazem sua suplência aqui ou acolá”.

Com o tempo, observei que eram ainda maiores as duas distâncias: os dois cursos do Fundamental compartilhavam o sítio e a colheita, mas não os dia- letos, o 1 e o 2 se separavam obedientes ao relógio, no meio do dia.

Nunca se descobriu por que a rua circunscre- via os projetos e apartava os alunos, em vez de descansar entre dois passeios intercambiáveis ou mesmo convidar à aventura da travessia. O certo era que todos se acostumaram à geografia e ao muro tácito; os meninos de um lado não deveriam avançar antes do tempo, e os jovens do outro não ousassem um retorno injustificado. Professores pouco sabiam de seus vizinhos, pois supostamente o tempo era diverso a norte e sul, bem como os costumes e os interesses.

Em 1998, saí das salas do Médio, em que era professora, para o eixo à nascente das séries iniciais, encarregada de dirigi-las. Então, vi!

Entrelaçadas a todas as diferenças arroladas, discretas nos silêncios expressivos com que as duas ou três civilizações escolares se cumprimentavam — entrelaçadas e discretas medravam as mesmas flores, cortejadas pelos pássaros coletivos, pelas vozes comuns. A despeito de qualquer fronteira, crianças cresciam rapidamente e exploravam, no tempo de cada novo ano, todos os espaços de sua verticalidade estudantil.

Já os adultos careciam de se conhecer melhor, combinar visitas quando tivessem tempo, “…nos vemos lá na sala dos professores, um dia…”

Talvez o homem tenda mesmo a se fechar em capelas e abrigos, renegando o claro e aberto, como na fábula poética de João Cabral de Melo Neto. De fato, quando a Educação Infantil do Santa nasceu, abrindo o século XXI, a casa gaudiana parecia a alguns o cenário de uma dramaturgia ingênua. E com outros, muitos, foi preciso insistir: “os portões do pré são vazados, o gramado onipresente, tudo é prenúncio, bom augúrio!” Mas a vizinhança tendia apenas a constatar a presença de outro território mais primitivo à noroeste, fechado lá em suas coordenadas.

Sempre tive tanto desejo de desfazer essa ordenação tímida, esse cardápio restrito. Lamenta- va que, por costume, a pedagogia da infância não fosse partilhada pelos educadores dos outros ciclos. A magia da primeira palavra escrita, as perguntas inquietantes, a alegria das vozes agudas correndo nos gramados, o apego e o jogo — o acervo desse jardim edênico parecia esconder sua sabedoria e permanecia à margem do direito de ser conhecido.

Ao mesmo tempo, faltavam-me os colegas do Médio agora longe — os antigos e os novos. Perguntava-me sobre eles revisitando-os na ausência: que língua falavam, que surpresa traziam, que jogos propunham? E nossas crianças de ontem, que atravessaram o dia e a rua, o que se tornavam no ponto final do arco? Quanto de nós elas levavam para os ciclos posteriores? A aspiração de uma topografia livre era também uma espécie de saudade pelo avesso, uma reminiscência do futuro que pertenceria a outros.

Quem começou a brincar com as cercas e a desalinhar os pontos cardeais foram as crianças. Afinal, era preciso entrevistar os adolescentes do Médio para o jornal do 5o ano, visitar os aposentos do Pavilhão Corbeil para recriar os vitrais na aula de artes do 2o ano, almoçar na cantina barulhenta dos grandes, receber respeitosamente os alunos da

8a série / 9o ano como monitores na festa dos es- portes. Depois os sítios foram se desfazendo em boulevares abertos, empréstimos de laboratórios, professores dos grandes convidados para palestrar aos menores, encontros de jovens nos espaços pueris da pré-escola, professores compartilhando com outros cursos suas experiências disciplinares.

DIVERSIDADE E UNIDADE

O Colégio Santa Cruz assentara seus princí- pios com solidez, nas bases de sua fundação; e tais princípios constituem uma linguagem educacional orgânica, a despeito das diferentes etapas pedagógi- cas. Os planos de cada uma delas estão circunscritos ao plano diretor geral, e a conexão entre os termos deve ser uma meta e um valor coletivo. É disso que trata a arquitetura do aberto, da livre circulação integrada das experiências de formação.

Foi com alguma incerteza que os docentes dos diferentes cursos começaram a trabalhar conjunta- mente nas reuniões de verticalidade, propostas pela direção geral, a partir de 2012. Embora abertos à experiência de uma rearquitetura do campus e dos conhecimentos, conjecturava-se entre eles que, afinal, já havia tanto a fazer nas reuniões fechadas de cada instância, esse projeto de integração poderia levar à burocratização dos planos pedagógicos, ao atraso dos conselhos assoberbados com tarefas específicas, ao controle da produção docente, à uniformização dos currículos ou ao risco de perda da autonomia dos programas…

Paralelamente, a constatação que dera origem ao projeto constituía em si mesma uma estratégia para desconstruir pouco a pouco as muretas e os preceitos. Para que os educadores vivessem a plenitude das relações previstas pela instituição, precisariam se conhecer. A vivência e a fruição de um espaço dialógico sustentaria consistentemente a unidade, no discurso e na prática.

As implicações desse processo eram conhecidas e se cumpriram. Conhecer e avaliar exigiram de todos a abertura para divergir sobre conceitos, conteúdos e métodos, para rever pontos obscuros, para reconhecer os respectivos méritos e funções, para repensar coletivamente o currículo da escola, à luz de uma história e uma geografia expostas à interlocução, à interação, à troca.

Pouco a pouco as reuniões de área, ou reuniões de verticalidade disciplinar, sucederam-se e assumiram o caráter de encontro. Foram dois anos de formação. Vinte reuniões, 200 relatórios registrando confluências, estranhamentos, divergências e parcerias. Tempo e números destinados a estabelecer um conjunto coeso – mas não uniforme, ou pacificado, ou estático – de concepções educacionais e pedagógicas, de objetivos, conteúdos e metodologias de cursos e disciplinas. Tudo para favorecer o dinamismo curricular, o diálogo, a orquestração dos cursos e a consecução das metas gerais de formação do Colégio.

Essa experiência trouxe visibilidade ao que permanecia mais ou menos recluso nos limites dos cursos, das séries, das salas. A excelência dos professores e suas aulas revelavam e relatavam experiências inovadoras e profundas, capazes de estimular os alunos, gerar opções, semear, intervir. Havia dezenas de exemplos com o direito e o dever de serem divulgados.

Tal circunstância conduziu, quase natural- mente, à proposta seguinte. Por que não estender as reuniões e seus resultados por todo o campus, sem as fronteiras disciplinares, em um congresso interno, que viabilizasse a conversa e o conhecimento a partir das aulas, projetos, metodologias que vicejam por aqui?

Por que não planejar e promover esse congresso no início dos trabalhos letivos, como introdução dinâmica ao planejamento anual que usualmente ocupa os últimos dias de janeiro.

O CONGRESSO: HARMONIA POLIFÔNICA

Sem propor temas, formato, estilo, formulou- se o convite aos professores para apresentarem suas experiências e compartilharem propostas, individualmente ou em grupo, disciplinar ou intermultidisciplinarmente. As adesões foram espontâneas, diversas e originais, e concretizaram-se em oficinas e comunicações que transbordaram a reunião de planejamento e espalharam-se em surpresas, em “portas por onde, livres”.

24 de janeiro de 2014. “Foi o de não sair mais da memória”.2

Ao descrever o evento, Padre José poetizou: “Parecia uma colmeia”. Sutil metáfora que apontava o trabalho coletivo em uma tela orgânica. Os professores, mais que sujeitos, senhores em seu ecossistema, atuando dentro, fora e às margens de suas disciplinas e as de seus pares, descobrindo-se em novos saberes, aos duetos, em solos, trios, bandas abertas a todas as vozes.

Foram 49 apresentações. Duzentos e cinquenta integrantes circulavam nos palcos, arenas e plateias socializadas do Fundamental 1, do novo pavilhão de artes, dos laboratórios do Ensino Médio, do pátio azul do Fundamental 2 e cursos noturnos: espaços do Colégio Santa Cruz.

Então, vimos. Os temas de alfabetização se desdobrando nas primeiras criações infantis e encontrando suas pontas finais na experiência de linguagem do Ensino Médio. O passeio pela geometria das séries iniciais convergindo para a geometria do Fundamental 2. A matemática cortejando a narrativa que também alinhava histórias, tecidos, jogos, lutas, cantorias, religiões. O sabor requintado das transformações químicas, a partilha do pão com manteiga. A linguagem artística que se erige à luz da ciência. O documento, a memória e a arte. O mergulho na história e nos conflitos seculares. O relato sobre as crianças que desconhecemos. A viagem pelos sabores inusitados das matas machucadas. A geografia dos muros universais e a universalização geográfica dos ritmos. As tecnologias abraçando as falas, as provas, os textos, os corpos, o aprendizado, humanizando-se na cultura que se produz na escola. A fruição literária e o elogio do livro, sem fronteiras linguísticas e disciplinares. O engenho e a arte da construção de cursos. A investigação sobre a essência e a aparência dos

alimentos, das informações, das percepções cognitivas. O prazer de descobrir o que já se conhece, inefável alimento que rejuvenesce as relações, as obras, as amizades.

Ao longo do dia, o postulado de Bertrand Russell se cumpriu: quem tem uma ideia, ao trocá- la com alguém, fica com duas ideias, pelo menos. De fato, nessa instância socializada da produção e do compartilhamento de conhecimento e cultura, o valor é transcendente e multiplica os ganhos, para todos. Nosso primeiro congresso atualizou a virtualidade da etimologia do termo: encontro. Por analogia sonora, mais que isso, um congraçamento. E ainda, o Colégio recuperava, na prática, o significado ofuscado pelo tempo: associação de colegas.

— a gente voava, num amor, nas palavras: no que se ouvia dos outros e no nosso próprio falar. E como terminar?3

NARRATIVA, SENTIDO E DEVIR

Um dos sentidos da “arquitetura como construção do aberto” — em epígrafe — é o elogio à livre comunicação. Daí a escolha do poema de João Cabral para iniciar este texto. Se, por um lado, ele inspira conteúdos, por outro, incita a escolha de entrelaçar com narrativas este breve artigo sobre a dinâmica das ideias e relações no Colégio Santa Cruz. A liberdade formal se justifica pelo conteúdo, e este convida àquela.

O texto narrativo é o lugar em que algo se transforma. A narrativa projeta um acontecimento marcado por uma busca de valores, relata uma busca de sentido, pelo homem, para seu estar- no-mundo. O primeiro parágrafo deste texto traz perguntas que o relato posterior procura responder. No universo orgânico do Colégio, os educadores — professores, coordenadores, orientadores, direto- res, padres — e todos os alunos são os arquitetos, os mestres construtores dos eventos, das palavras e das ações em permanente movimento.

Porque afinal cada começo
é só continuação
e o livro dos eventos
está sempre aberto ao meio.4

(1) João Cabral de Melo Neto. Fábula de um arquiteto, em Educação pela pedra.

(2) João Guimaraes Rosa. Sorôco, sua mãe, sua filha, em Primeiras estórias.

(3) João Guimaraes Rosa. Pirlimpsiquice, em Primeiras estórias.

(4) Wislawa Szymborska. Amor à primeira vista, em [poemas].

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