A “improvisação organizada”

A “improvisação organizada” do Padre Roberto

9 de agosto de 1968. O Brasil vivia os primeiros anos da ditadura militar e dali a cerca de quatro meses encararia o “golpe dentro do golpe” com a decretação do AI-5. Nesse dia, há exatos 50 anos, no aeroporto de Viracopos, em Campinas, um jovem missionário canadense pisava pela primeira vez o solo brasileiro sem saber falar português. Já no desembarque, o rapaz conheceu um pouco da burocracia do país: “O moço falou que faltava o carimbo do consulado no exame médico e eu e o Padre Lourenço ficamos detidos no aeroporto por muitas horas. Perdemos a condução para São Paulo e tivemos que pegar um táxi para chegar ao Colégio Santa Cruz, sem nem ter ideia de onde ficava”.

Esse foi o primeiro episódio do Padre Roberto Grandmaison, da Congregação de Santa Cruz, no nosso país. Tudo era novo e muito diferente daquilo a que ele estava acostumado. Hoje, totalmente integrado no cenário paulistano, ele afirma que a vida dele é aqui, no Jaguaré, que ele considera um “microcosmo do Brasil”.

A “improvisação organizada” – expressão paradoxal que ele gosta de usar- de suas ações ajudou a dar perspectivas de vida a muitas pessoas. Padre Roberto é responsável pelo Programa Jaguaré Caminhos, que hoje atende 1150 crianças e adolescentes.

Confira um pouco da história dele.

Como foi a decisão de vir para o Brasil? O senhor veio já com a intenção de ficar?

Foi uma decisão que foi amadurecendo ao longo dos meus estudos. Quando eu terminei o curso de Teologia, em Quebec, conversei com meu superior para ver onde eu poderia trabalhar.  Eu queria ir para fora do Canadá. Cogitei Bangladesh, mas eu deveria estudar nos Estados Unidos para isso. Apareceu a possibilidade de vir para a América Latina, com duas opções: Haiti ou Brasil. Eles me indicaram o Brasil, que passava por um período turbulento. Então eu vim, não como turista, mas de braços abertos para trabalhar.

O que foi mais difícil nesse primeiro contato?

Para dizer a verdade, eu nunca senti nenhuma dificuldade. Eu vim aqui para me aclimatar, para realmente entrar no espírito de ficar aqui e trabalhar aqui, com predisposição a estudar e a encarar os desafios, a me inserir na realidade do país. Nunca olhei para trás.

O senhor chegou pouco antes do AI-5. Como foi o contato com a ditadura?

Quando cheguei aqui, a situação estava se complicando. Eu nunca tinha vivido um contexto de ditatura, não sabia ao certo o que significava isso. Eu tinha dois colegas, um da Juventude Operária Católica (JOC) e outro da Ação Operária Católica (AOC), que me ajudaram a entender a conjuntura do país. Participei de encontros, conversas. No começo, eu não entendia muito do que falavam, mas, aos poucos, fui compreendendo.

No final daquele ano, estava em um encontro, fazendo um curso, em Petrópolis com missionários do mundo todo. Na noite do dia 13 de dezembro (dia em que o AI-5 foi decretado), falaram que tínhamos que ir embora naquela mesma hora, pois a casa estava sendo visada. Nós saímos, pegamos o ônibus para São Paulo e, ainda por causa da confusão no aeroporto, eu estava sem passaporte, sem documento. Mas não fiquei nervoso.

Quando o senhor se mudou para o Jaguaré?

Em janeiro de 1969. Eu vim aqui como diácono, não como padre. Fiquei 3 anos na Paróquia São José do Jaguaré nessa condição. Só fui ordenado padre em setembro de 1971. Assumi a Paróquia em 1974 e continuei vivendo no meio do povo.

Cheguei a pensar em trabalhar nas fábricas. Tirei até carteira profissional para atuar como metalúrgico, mas fui aconselhado a desistir. Padre estrangeiro na fábrica chamava muito a atenção do governo da ditadura. Pensei em me nacionalizar como brasileiro, mas era muito complicado. Minhas ligações com o mundo operário eram por meio da JOC e da AOC.

 O senhor teve alguma atuação política nesse período?

No decorrer do trabalho, fui entrando na vida do povo brasileiro. Conheci melhor a Igreja de São Paulo. Fiz muitos amigos. Trabalhei muito perto de Dom Paulo Evaristo Arns, cardeal de São Paulo, que criou muitas experiências novas aqui em São Paulo, como, por exemplo, a Operação Periferia e a construção de centros comunitários.

Isso exigiu um plano de Pastoral para a Igreja de SP e a criação de comunidades de base. Eu fui envolvido nessa tarefa. Ajudei, com mais 15 pessoas, a formar a Comissão de Direitos Humanos, da qual depois me tornei diretor. Também fazíamos parte do Grupo Clamor, que acolhia os muitos imigrantes de outros países da América Latina que também passavam por ditaduras. Eles vinham e procuravam a Avenida Higienópolis, 890, que era o endereço da Cúria.

Quando a ditadura terminou, paramos de cuidar da comissão.

 Como foi a mudança para a favela?

Acabou a ditadura e, então, como não tinha mais nada para fazer (risos), eu disse aos colegas: estou pensando em morar na favela.

A Congregação comprou uma casa, o Colégio ajudou. Bem no miolo da favela, na Praça 11. Eu me mudei para lá. E sem barulho. Muita gente nem sabia que eu morava lá.

A chegada do Professor Cláudio no SAN veio ao encontro do trabalho social que se desenvolvia com minha ida à favela.  Eu me perguntava: como podemos organizar uma presença mais eficaz? Então minha experiência me levou a formular um princípio: a improvisação organizada. A improvisação organizada significa estar aberto aos sinais dos tempos. Significa ver o que está acontecendo, conhecer a realidade. E depois aceitar mudanças.  A Igreja tem que estar aberta para fora.

A evangelização deve ser adequada à realidade do povo, deve caminhar junto com o povo, visando à construção da cidadania. É o que a gente chamaria, com Paulo Freire, de conscientização.

Como foi a evolução do trabalho social?

Começamos com uma creche. Reunimos 15 mães e perguntamos o que elas esperavam da Congregação e da Paróquia. Elas disseram: queremos que vocês nos ajudem a preparar as crianças para ir à escola, permanecer na escola e gostar da escola. Na época, a evasão escolar era muito grande.

Então nosso trabalho foi e tem sido com educação, que é a grande característica da Congregação: a educação de qualidade. A gente vê isso aqui, no Colégio, para outro público, e lá, no Jaguaré, para os mais necessitados.

Começamos com 25 ou 30 crianças. Hoje temos 100 funcionários para atender a 1150 crianças e adolescentes. Temos um grupo de 60 crianças com deficiência, que recebem tratamento especial e, desde o final do ano passado, temos um grupo de cerca de 80 crianças com quem realizamos um trabalho psicopedagógico.

Isso é uma novidade. Percebemos que havia crianças que chegavam lá e, apesar de estarem no 5º ou no 6º ano da escola, não sabiam nem ler nem escrever. É absurdo, mas percebemos que isso acontece com cerca um terço das crianças. Muitas não aprendem por problemas psicológicos. Então, contratamos dois fonoaudiólogos e dois psicólogos e estamos procurando atender às necessidades especiais delas. Eu espero que em um ano e meio, mais ou menos, o problema tenha sido resolvido.

 Como o senhor avalia esses 50 anos?

Conquistamos uma coisa que não tem preço: a credibilidade. Hoje existem pais que frequentaram nossas creches e trazem seus filhos para lá. Outros vêm ajudar. Isso não tem preço.

Sempre fiquei por aqui. Nunca cansei. Minha vida é esta.

 

Leia o perfil do Padre Roberto e assista ao vídeo com a história do Programa Jaguaré Caminhos.

 

 

 

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